Ilustração de Livia Falcaru
“Uma manhã li os pequenos anúncios e me vesti, tomei o metrô para a cidade e me candidatei a um emprego. Em dez minutos o emprego era meu. Qual era mesmo o nome daquela empresa? Agora esqueci.”
”Angelica Uniform Company”, completei de imediato.
”Você se lembra!” Minha mãe sorri para mim beatificamente. “Olhe só para isso. Ela se lembra. Eu não consigo me lembrar. Ela se lembra.”
”Agora eu sou o repositório da sua vida, mãe.”Afetos ferozes, de Vivian Gornick
Eu sou o repositório de memórias da minha família. Não é um título que recebi por vaidade, porque eu quis, porque achei charmoso, nem mesmo porque escrevo. Mas, sim, por uma questão mais simples: sou quem realmente lembra das coisas. Tenho recordações desde os dois anos, quando meus pais se separaram. Consigo descrever o apartamento onde morávamos, as birras da minha irmã e até o cheiro de árvore que vinha da janela com vista para a Serra da Cantareira.
Se contamos a história do dia em que compramos uma saco imenso de laranjas na estrada para Minas Gerais, eu assumo a liderança e faço a reconstituição do caos que se deu no carro quando descobrimos que o saco tinha mais bichos do que frutas — bichos que escalaram as pernas da minha tia. Da vez em que outra tia perdeu quase todo o cabelo, lembro dos risos abafados, das tentativas de fingir que não era nem um pouco engraçado o fato de ela ter ficado HORAS com a química do permanente porque sentiu vergonha de avisar o pessoal do salão de que já tinha dado o tempo do produto.
Guardo também informações de eventos que não presenciei. Há uns meses, minha avó fez o relato, até então inédito para mim, de como foi sua separação. Enredo de novela, com direito a detetive particular. Sinto que ouvia e ao mesmo tempo gravava os termos, o tom. Sei que vou repetir a história muitas vezes. Para as minhas irmãs esquecidas, para as amigas que vão tirar proveito de tanta coragem.
Lembro de coisas que nem sei se lembro, mas que, quando transformo em narrativa, fazem tanto sentido que se tornam parte do grande compêndio familiar. Coleciono esses momentos com o objetivo de não esquecer de nada. Para quem sabe um dia condensar em algum formato literário as partes que mais me tocam. Não queremos todos isso? Mostrar a história da nossa vida, sentir que a experiência dos anos teve um significado para além da rotina?
Formulo essas perguntas a partir da leitura de In memory of memory, de Maria Stepanova. Uma mistura de romance com ensaio que vem mexendo bastante com a minha cabeça, especialmente trechos como este abaixo, que traduzo livremente:
Nenhuma dessas pessoas, nem as que ainda estão vivas, nem as que já estão mortas, foram vistas. A vida não lhes deu oportunidade de serem lembradas ou permanecerem à vista, de ficarem brevemente sob os holofotes; sua trivialidade as colocava além do interesse humano e isso parecia injusto. Havia, penso eu, uma urgência em falar sobre elas e em seu nome, e a missão me assustava. Começar a escrever era deixar de ser uma ouvinte curiosa, uma destinatária, e me tornar, em vez disso, o norte da linhagem, o destino do navio da história familiar, formado por muitos olhos, por muitos enfeites.
In memory of memory, de Maria Stepanova
Afetos ferozes foi o último livro que li no ano passado. Escrevi sobre ele com mais detalhes nesta edição aqui — é um dos textos mais íntimos que já publiquei. E como deu para notar, as memórias de Vivian Gornick continuam movendo bastante coisa dentro de mim. Bom livros são assim, não se esgotam numa resenha, num papo.
Gostei das conexões que a
fez entre Paul Mescal, Connell e Calum <3Indicações quentinhas de newsletters literárias
Três livros que estou de olho:
Garotas brancas, de Hilton Als
Departamento de especulação, de Jenny Offill
Na sala dos espelhos, de Liv Strömquist
Trama e subtrama — episódio bacana do podcast que ouço quando volto do trabalho
Por que odiamos #publi #ad #branded?
Frango frito com kimchi que eu quero MUITO experimentar
E aqui uma receita de arroz frito com kimchi com ninguém menos que Michelle Zauner — dica da querida
No começo da semana mandei para os apoiadores da newsletter uma edição extra com:
- PLANOS PARA O MESTRADO
- E COMO ESTOU ORGANIZANDO AS LEITURAS, com direito a template do Notion ;)
Ah, Barbara... você sempre me inspira tanto. Sempre te leio, embora seja a primeira vez que comento (acho). Inclusive, indico sempre sua newsletter para os meus amigos e hoje coloquei seu link na minha newsletter. Obrigada pelos seus escritos. Eles sempre reverberam coisas lindas e grandiosas por aqui. Beijos!
Aqui em casa esse posto me pertence. Minha avó sempre confiou a história da família aos meus ouvidos ávidos por saber como ela saiu de Macau, no sul da China e veio parar no Brasil. Uma mulher que divorciou duas vezes, qdo isso nem era cogitado. Ela sempre me pede para que essas histórias sejam transmitidas aos meus sobrinhos e depois aos filhos deles, e assim nunca morrer. No fundo ela sabe que manterá viva por meio das memórias.