Afetos ferozes foi eleito o melhor livro de memórias dos últimos 50 anos pelo New York Times. A quarta capa também diz que o relato de Vivian Gornick iniciou o “boom recente das memórias nas letras”.
Bem adequado que tenha sido a última leitura de um ano marcado por mergulhos na história de vida dos outros: Aos prantos no mercado, Lili: novela de um luto e uma trinca de Annie Ernaux — O jovem, O lugar, O acontecimento. Além do luto e da relação ambivalente com os pais, percebi um ponto de conexão: quase todos esbarram no sentimento agridoce de quando nos distanciamos de nossas origens. De quando, por meio do esforço de nossos pais, mudamos de círculo social. Realizamos um desejo deles, mas ao mesmo tempo cavamos um abismo impossível de transpor.
Vivian Gornick conta que a partir do momento em que começou a estudar, a pensar de forma crítica, passou a falar uma língua diferente da que sua mãe compreendia. Ainda era inglês, mas também não era:
Bastou um mês daquelas primeiras aulas para que minhas frases ficassem mais longas. Mais longas, mais complicadas, compostas de palavras cujo significado ela nem sempre conhecia. Até ali, eu nunca pronunciara uma só palavra que minha mãe não conhecesse. Ou construíra uma frase cuja lógica não acompanhasse. Ou esboçara uma opinião cujo fundamento fosse uma abstração. Aquilo a deixou doida. Seu rosto começava a assumir a expressão de uma esperteza animal assim que eu dava início a uma frase que não tinha como ser concluída antes que três parágrafos saíssem da minha boca. A esperteza despertava a raiva e a raiva se inflamava em ira. "Do que você está falando?", minha mãe gritava. "Do que você está falando? Fale inglês, por favor! Nesta casa todo mundo entende inglês. Pois fale inglês!" (p. 110)
Annie Ernaux escreve bastante sobre isso, a convivência com o pai operário/comerciante tendo ela ascendido à classe intelectual. Também vejo variações do tema em Pessoas Normais, quando Connell está decidindo qual faculdade frequentar. Se escolher ficar perto de casa, as relações serão mantidas. Se for para a capital, efervescente e excitante, nunca mais será o mesmo.
É um assunto que destaco nas leituras porque me identifico com o afastamento, com a transformação que vem com a mudança de espaço, com o contato com novas ideias, com círculos sociais diferentes. Comigo aconteceu quando meus pais se separaram. Quando saímos de casa no carnaval de 88, um tanto fugidas, minha mãe, minha irmã e eu estávamos deixando para trás uma vida de menos possibilidades. Não tanto pelo dinheiro, mas, sim, por uma mentalidade estreita. Minha mãe tinhha sido impedida de continuar estudando e sofria constantes implicâncias com qualquer trabalho que assumia. O motivo era o ciúme extremo e um desdém pela ambição feminina. Longe dele, ela pôde mais. Fomos morar com meu padrasto no lado oposto da cidade. Meu pai odiava sair da zona norte para nos pegar na zona sul, um lugar de esnobes. Fizemos esse trajeto inúmeras vezes, mas conforme eu crescia não sentia mais prazer em encontrá-lo. Não só por causa das turbulências da adolescência. Eram nossas conversas que tinham ficado estranhas. Superficiais. Ele não sabia de mim, de tudo que me interessava. O fato de eu ler bastante era considerado exótico. Muito diferente do que eu experimentava na família do meu padrasto, onde sempre encontrei incentivo, onde sempre me entregaram um livro. Lembro de um Natal em que estávamos sentados na sala, conversando sobre uma leitura que tinha passado de mão em mão. Isso nunca aconteceria na minha família paterna. Eu não tinha linguagem para formular o desconforto que esse contraste de vivências despertava em mim. Mas ele estava lá. Criei o hábito de não comentar as coisas que estava aprendendo. Evitava a todo custo parecer esnobe.
Fantasio até hoje com o que teria me tornado caso meus pais não tivessem se separado. Seria outra, com certeza. Minha mãe não seria a mulher que vim a conhecer e admirar. Pela força, pela independência. Então, sinto alívio pelo que aconteceu. Gosto de ser quem sou. Mas hoje reconheço a dor que acompanhou — e ainda acompanha — esse processo.
Neste fim de ano, ouvi de minha avó que sou uma intelectual. Foi um elogio, uma explicação para o fato de determinada pessoa se identificar mais comigo. Entendi o comentário, mas quase pedi desculpas por pertencer a essa categoria. Um marcador de separação. De distância. Respondi atrapalhada, disse que vinha estudando, mas ainda era acessível, sem papos desnecessariamente cabeçudos. Esforço — provavelmente inútil — de não pisar definitivamente em nenhum dos lados. Estar no entre é um lugar que conheço bem.
Annie Ernaux, uma escritora trânsfuga de classe — termo que designa quem ascende de classe. Indiquei este artigo numa das edições exclusivas para apoiadores da newsletter
O primeiro ano do mestrado — vídeo-relato da experiência que tem me transformado. É mais um exemplo de conteúdo que chegou primeiro para os assinantes ;)
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E fiquei felizona de aparecer em duas listas especiais:
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- Retrospectiva do Clube do Livrismo
Assisti A ilha de Bergman e adorei. Tem no Mubi — e dia 6 de janeiro estreia Aftersun, com meu querido Connell
O próximo livro que devo ler é Derrubar árvores: uma irritação
Para janeiro, estou de olho neste lançamento da Companhia das Letras, além das outras mil leituras que quero e PRECISO fazer
Queria ser grande, mas desisti também é livro \o/
E se quiser me acompanhar em tempo nada real: @babibomangelo
"Eu não tinha linguagem para formular o desconforto que esse contraste de vivências despertava em mim. Mas ele estava lá. Criei o hábito de não comentar as coisas que estava aprendendo. Evitava a todo custo parecer esnobe."
Me identifiquei bastante. Há anos vivo entre a capital e o interior do Rio Grande do Norte e sempre me senti entre dois mundos.
Além disso, nutro relações com pessoas de ciclos totalmente diferentes, o que vez ou outra me faz se sentir sozinho. Não existe um momento onde eu não me apague pra não parecer esnobe ou ferir alguém, por mais que eu tenha clareza sobre as minhas intenções.
A parte mais positiva do processo é que consigo enxergar, por trás de todas as crenças que afastam o diferente, o brilho das pessoas ao meu redor.
Sigo tentando não pirar com tanta destruição. Seu texto trouxe uma baita luz <3
Que texto maravilhoso 🖤 Feliz de aparecer nas indicações dessa edição perfeita!