Ilustração de Haley Tippmann
Sou cria da geração mIRC, ICQ e MSN, mas minha ferramenta de escolha para conversas com os amigos foi por muito tempo o e-mail. Era um vai e vem tão intenso de correspondência que o assunto da mensagem ficava assim, cheio de RES:
Papos sobre esses tais jornalistas músicos, relatos de viagem, conselhos amorosos e reclamações diante de uma vida adulta que não parecia muito aquilo que prometeram. Se eu tivesse que imprimir alguns desses e-mails, tomaria páginas e páginas de um pacote A4 de sulfite. Eles chegariam, no papel, perto do tamanho de um conto ou até de uma novela. Narrativas às vezes fragmentadas. Outras, com começo, meio e fim. Com uma estrutura que não foi simplesmente cuspida no teclado. Não, tinha um trabalho ali, uma construção. Um exercício criativo, literário.
Reconheci esse movimento — que vai além de um registro dos dias ou de uma conversa qualquer — quando li em Pessoas Normais, de Sally Rooney e via tradução de Débora Landsberg, o processo de Connell para formular os e-mails que envia para Marianne ao longo da história:
Nas semanas que se passaram desde que estão distantes, seus e-mails para Marianne se tornaram longos. Ele começou a rascunhá-los no celular quando estava à toa, enquanto esperava as roupas na lavanderia ou estava deitado no hostel à noite e não conseguia dormir por causa do calor. Ele lê os rascunhos diversas vezes, revisando todos os elementos da prosa, deslocando orações para fazer as frases se integrarem corretamente. O tempo se abranda enquanto digita, parecendo lento e dilatado, embora na verdade ande com muita rapidez, e mais de uma vez ele ergueu os olhos e percebeu que as horas tinham passado. Não conseguiria explicar em voz alta o que vê de tão interessante em seus e-mails a Marianne, mas não acha que seja trivial. A experiência de escrever parece a expressão de um princípio mais fundamental e mais amplo, algo em sua identidade, ou algo ainda mais abstrato, que tem a ver com a vida em si. Em seu diário cinza, escreveu há pouco tempo: ideia para um conto narrado por meio de e-mails? Depois riscou, decidindo que era artificial. Ele se vê riscando coisas no diário como se imaginasse uma pessoa futura o examinando em detalhes, como se quisesse que a pessoa futura soubesse quais ideias ele reconsiderou.
Assim como Connell, eu também falo comigo a partir de perguntas lançadas em um caderno — e suspeito que Sally Rooney faça o mesmo. Se ela escreveu um conto narrado por e-mail, não se sabe, mas ela fez um romance inteiro entrecortado por cartas digitais de duas amigas: Belo mundo, onde você está.
Nesse romance publicado em 2021, a maioria dos capítulos ímpares traz um narrador em terceira pessoa que conta a dinâmica da relação de dois casais. Os capítulos pares, por sua vez, são reproduções de e-mails enviados por Alice e Eileen, que se conhecem desde os tempos da escola, mas que agora vivem momentos e lugares diferentes. Essas mensagens quebram a trama — já que boa parte dos tópicos tratados nelas não tem conexão com o desenrolar da história e nem mesmo preservam uma continuidade em relação ao último e-mail enviado:
Querida Eileen. Esperei tanto tempo para você responder ao meu último e-mail que estou mesmo—imagine só!—escrevendo outro antes de receber a sua resposta. Em minha defesa, reuni bastante material agora e, se eu esperar mais, vou começar a me esquecer das coisas. Você deve saber que a nossa correspondência é meu jeito de me agarrar à vida, fazer anotações sobre ela e assim preservar alguma parte da minha—de resto quase inútil, ou até completamente inútil—existência neste planeta que se degenera rapidamente…
Reunir bastante material, se agarrar à vida. Esses e-mails não são só e-mails. São espaços de elaboração, de fabulação, de digestão do mundo. Um lugar com um leitor acolhedor que nos permite tecer comentários sobre sistemas político-econômicos, a crise climática, o papel da arte, descobertas sobre pesquisas e obsessões aleatórias, pitacos sobre livros devorados ou abandonados.
Já te contei que não consigo mais ler romances contemporâneos? Acho que é porque conheço gente demais que os escreve. Vejo essas pessoas o tempo todo em festivais literários, tomando vinho tinto e falando de quem está publicando quem em Nova York.
[…]
Alice, você não acha que o problema do romance contemporâneo é simplesmente o problema da vida contemporânea? Concordo que parece vulgar, decadente, até violento no sentido epistêmico, investir energia nas banalidades do sexo e da amizade se a civilização humana está à beira do colapso. Mas, ao mesmo tempo, é isso o que eu faço todo dia.
Esses e-mails são ensaios sobre a experiência vivida e a experiência estética dos dias.
São literatura.
Assim, sem nenhum porém. Sem dizer que são uma espécie, um tipo ou que parecem literatura. E-mails que assumem tal caráter, tal atenção com o que é dito e como é dito, são literatura.
Isto que faço aqui é literatura.
Não só eu, é claro. Há um movimento acontecendo. Bonito de ver, formado por muitas mãos — mãos de muitas mulheres. Que abrem uma janela em branco de uma mensagem de e-mail e escrevem para tantas outras. Sobre seus dias e sobre o mundo. Uma meada de fios bem emaranhada, onde já não se sabe o que é registro pessoal e o que é registro coletivo.
A literatura não está só nos livros. A literatura não é o que achamos que ela deveria ser. Ela é o que é. E ela também está aqui, nestes e-mails.
Esta edição é comemorativa \o/ Julho é o mês do meu aniversário e também é o mês em que comecei a newsletter. Já são 8 anos deste fazer literário e criativo. Comecei com 10 leitores e agora são quase 10 mil. Agradeço demais o presente que é trocar correspondência com gente interessante e receptiva <3
As reflexões que você leu ali em cima já tiveram outras formas. Trabalhei esse texto como artigo para um disciplina do mestrado e também como carta para a
. Até então, encarava os e-mails que aparecem na obra de Sally Rooney como uma espécie de diário compartilhado entre amigos. Mas minha percepção mudou — pesquisa é isso, a gente pensa um tempão sobre os mesmos assuntos para chegar em conclusões diferentes e a que mais me agrada no momento é esta: e-mails como espaço de experimentação literária. Pretendo desenvolver esta ideia numa apresentação que farei em outubro. Vamos ver que cara terá depois desses meses ;)Em setembro tem livro novo de Sally Rooney e ando alimentando a vontade de ler as primeiras páginas numa transmissão ao vivo, para a gente ter um surto conjunto, pro bem ou pro mal. O que acham? Na semana passada, contei para os apoiadores da ansiedade que rola com essa espera
Começou na Escrevedeira um curso sobre Sally Rooney e a literatura do fim do mundo — gostei demais da proposta do Victor Calcagno, com foco em Belo mundo, onde você está, um dos livros menos comentados da autora e nem por isso menos interessante
A
enviou uma edição especial em que fala de newsletter como uma forma de pesquisa por lazer <3Sobre inteligências artificiais, baseado em fatos fictícios
Não sou (só) eu quem me navega
Para que se expor desse jeito?
As voltas e as reviravoltas da vida
Quatro amigas se atualizam da vida uma da outra durante o jantar <3
21 coisas sem sentido algum que achei nos meus próprios arquivos do Google - RI ALTO!
Manejando o vício por internet — me vi tanto nesse episódio de podcast
Música nova da Laura Marling, de quem gosto muito
Coisas que eu lembro do tetra
Livros que estou de olho:
- Como ser artista, de Jerry Saltz e tradução de Julia Lima
- Baumgartner, de Paul Auster e tradução de Jorio Dauster
- Proust, de Samuel Beckett e tradução de Arthur Nestrovski
Adorei ler sobre como a editora Fitzcarraldo foi fundada e como funciona a seleção de títulos
Estão acompanhando a lista dos melhores livros do século, de acordo com autores ouvidos pelo New York Times?
No mês passado, enviei para os apoiadores um vídeo com os livros da minha vida e agora liberei o acesso para todos \o/
Queria ser grande, mas desisti também é livro \o/
E se quiser me acompanhar em tempo nada real: @babibomangelo
Babi, parabéns por esses números que contam de uma continuidade linda, a de uma troca de palavras que você faz movimentar toda vez que entra na minha caixa de entrada! Sinto que somos correspondentes de longa data ❤️ Você não é grande, você é enorme, e espero ver sua news, seu projeto literário, crescer ainda mais. E sim: o que fazemos aqui é literatura!! Vida longa às suas cartas!
Uma das coisas que mais gostei em Pessoas Normais e Belo mundo, foram realmente as conversas por e-mail. Parece que nos outros aplicativos não se tem tanto espaço para conversas longas e temas mais profundos, e como estão sempre por perto, sempre ativos, parece que a gente já fica meio apressado também.
Ah, minha presença está confirmadíssima na live pra ler o comecinho de Intermezzo! <3