São Paulo, 20 de dezembro de 2022
Esta é uma carta sobre cartas. E também sobre os formatos modernos que tentam mimetizar o papel, a tinta, o afeto. Falo especialmente do e-mail, que se propõe como carta instantânea, de visual simples, para mensagens que podem ser mínimas ou dignas de um calhamaço. O e-mail também convida a um exercício de privacidade. Suas palavras chegarão diretamente na minha caixa de entrada e outros só terão acesso a elas se for parte do nosso acordo, ou se alguma de nós cometer traição. Mas, para além dessas funções conhecidas, tenho pensado em outra vocação: os e-mails como uma espécie de diário compartilhado. Um álbum composto por aquilo que escrevo e as respostas que vêm na sequência.
Você já tinha pensado nisso? Para mim, o estalo veio enquanto lia o segundo volume de A preparação do romance, de Roland Barthes. Prometo não entrar numa longa e chata explicação, mas um dos conceitos que ele constrói é o tal do Álbum, uma escrita fragmentária, quase uma colagem de momentos, que podem terminar como um livro ou simplesmente existir assim, em partes soltas por aí. A publicação de diários de escritores são um bom exemplo do que seria esse Álbum proposto por Barthes.
Bom, com isso em mente, te peço para vir comigo num salto para a literatura contemporânea. Durante as pesquisas para o mestrado, esbarrei num romance misto: parte tradicional, parte Álbum. Ele não tem entradas de diário, como Caderno Proibido, e nem é fragmentário, como Correntes, MAS ele é entrecortado por e-mails. Para acabar com o suspense — tcham tcham tcham —, estou falando de Belo mundo, onde você está, de Sally Rooney.
Não sei se você já leu, mas nesse livro, que é o terceiro e mais recente da autora, há uma alternância entre capítulos narrados em terceira pessoa e capítulos que são e-mails trocados entre Alice e Eileen, amigas desde o tempo da escola, que agora, aos 29 anos, estão em momentos diferentes. Alice é uma escritora de certo sucesso e Eileen segue trabalhando numa revista literária, com rotina massacrante e salário baixo que a impedem de se dedicar à escrita.
Então, metade do romance “serve” para nos mostrar como está a vida de cada uma delas, as questões de carreira, com quem estão namorando e tal. E a outra metade traz a reprodução dos e-mails em si. E eles quebram a narrativa a seco, sabe? São comentários sobre sistemas político-econômicos, a crise climática, o papel da arte. Abaixo, colei um trecho de um dos e-mails para você ter uma ideia:
[…] cada dia se tornou uma unidade de informações nova e única, interrompendo e substituindo o mundo informacional do dia anterior. E fico me perguntando (talvez você diga que seja irrelevante) o que tudo isso significa para a cultura e as artes. Digo: estamos acostumados a nos envolver com obras culturais situadas “no presente”. Mas esse sentido de presente contínuo já não é uma característica da nossa vida. O presente se tornou descontínuo. Todo dia, até mesmo cada hora do dia, substitui e torna irrelevante o momento anterior, e os acontecimentos da nossa vida só fazem sentido em relação à timeline sempre em atualização dos jornais.
O fluxo assustador de informações e os impactos dele são um tema bem frequente na correspondência, mas não tem nada a ver com os capítulos mais tradicionais do livro, nos quais se desenrolam ações, conflitos rotineiros. Daí a impressão que eu tive de que as mensagens eletrônicas são folhas soltas, anexadas ao romance como complemento ou como um vislumbre dos pensamentos das personagens ou como um diário escrito a quatro mãos.
No entanto, tem um pulo de gato aqui: os e-mails, que poderiam ser vistos como um elemento menor da narrativa, para mim, são o que Belo mundo, onde você está tem de mais bacana. Todo o resto é esquecível. As relações amorosas são de pouco carisma —diferente do que temos em Conversas entre amigos e Pessoas Normais.
Não é bem uma surpresa que os e-mails sejam o ponto alto, já que eles são uma ferramenta importante para Sally Rooney. Numa entrevista recente – que é mais um bate-papo com a escritora Patricia Lockwood –, ela fala sobre isso e comenta também a distinção entre e-mails e cartas. Rooney ressalta que, nos e-mails, você pode salvar um rascunho e depois revisitar as mensagens enviadas:
[Os e-mails] ficam salvos automaticamente na pasta de rascunhos durante a escrita, eles chegam no mesmo instante em que são enviados, e cada e-mail pode ser visto e pesquisado a todo momento, tanto pelo remetente quanto pelo destinatário. Quando eu estava escrevendo meu primeiro romance, narrado em primeira pessoa, eu lembro de pensar na técnica narrativa como “voz de e-mail”
Rascunho, elaboração, arquivo de conversas, voz. Tudo remete a diários. Faz algum sentido para você? Só sei que são as conversas entre as protagonistas de Belo mundo, onde você está, sobre temas que parecem aleatórios, que emprestam personalidade ao livro e, portanto, são elas que mais ressoam entre os leitores. São elas que permanecem.
Quero saber o que você acha, Paula. Quando puder me conta? Talvez ninguém mais além de você, uma apaixonada por cartas, vai entender esse mergulho nos e-mails de personagens fictícios.
Esta edição é um presente para a querida Paula Maria, da
. No meio do ano, formamos um grupo bem bacana com autores de newsletter e resolvemos comemorar com um amigo secreto diferentão — com uma troca de cartas <3A Stephanie Fernandes abriu seu diário pandêmico
Síndrome de invejinha e a sede de protagonismo
Invejo sim, e tô vivendo
Sobre mudar de país e mudar de paladar
Histórias de meio-fio e cidades como poesia
O exército de bruxas argentinas que deu uma ajudinha na conquista do mundial — que texto <3
Os cursos de verão da FFLCH são em fevereiro, mas os detalhes para inscrição já estão no site. Eu recomendo MUITO — é de graça, não tem nenhum pré-requisito e é um belo jeito de voltar a estudar ou se aprofundar num tema que você já curte
Retrospectiva com escritoras latinas
E uma lista que achei divertidíssima
Resenha de Lendo Lolita em Teerã
Trechos do livro As margens e o ditado, de Elena Ferrante, que já já chega nas livrarias
Um vídeo delicioso e bem humorado sobre tradução
Queria ser grande, mas desisti também é livro \o/
E se quiser me acompanhar em tempo nada real: @babibomangelo
Gente, eu amei esse amigo secreto.
To bem maluca lendo vocês!
Que forma gostosa de encerrar o ano! =)
Queria que desse pra comentar com foto, li o Belo mundo onde você está e marquei TODAS as páginas onde estavam os e-mails. Concordo absolutamente que eles são o ponto alto do livro e que nos dão muito mais subsídios pra conhecer a personalidade das personagens, do que toda o restante. Amei Babi!