Ilustração de Laura Callaghan
Tenho fascínio por estudos de geração. Por essa tentativa de definir o espírito de uma época a partir de subjetividades que unem determinados grupos de pessoas. Susan Sontag chamava essas coisas de sensibilidades. E para ela, falar dessas sensibilidades era das tarefas mais difíceis. No começo do ensaio Notas sobre o camp, Sontag diz que
“qualquer sensibilidade que possa ser metida à força no molde de um sistema ou manuseada com os duros instrumentos da prova não é mais, de maneira alguma, uma sensibilidade. Enrijeceu-se em ideia…” 1
E são justamente os moldes que imperam hoje no debate sobre gerações. Da escolha dos nomes até os marcos temporais, com data de entrada e de saída. Estipularam, por exemplo, que a geração Y ou millennial abraça aqueles nascidos entre 1981 e 1996. Por quê? Bom, o Pew Research Center traça alguns fatores — e é esse exercício de aproximação de afinidades e de experiências que muito me instiga. Um marco importante para o instituto é a lembrança do 11 de setembro nos Estados Unidos:
“A maioria dos millennials tinha entre 5 e 20 anos quando os ataques terroristas abalaram a nação, e muitos tinham idade suficiente para compreender o significado histórico daquele momento, enquanto a maioria dos membros da Geração Z tem pouca ou nenhuma memória do evento.”
O Pew Research Center também cita as guerras do Iraque e do Afeganistão e dá destaque à crise financeira de 2008, que atingiu os jovens dessa geração bem no momento em que entravam no mercado de trabalho. Esse impacto socioeconômico é o que venho estudando na minha dissertação de mestrado, a partir da análise do romance Pessoas Normais, de Sally Rooney, que se passa entre os anos 2011 e 2015, conhecidos como os anos de austeridade na Irlanda.
Mas, ao mesmo tempo em que esses marcadores me parecem sensatos, eu vivo duvidando da possibilidade de capturar qualquer unidade num período que compreende DEZESSEIS ANOS. É muita coisa, são muitas diferenças. Principalmente quando olhamos para as bordas desse intervalo.
O abismo se apresentou diante de mim na forma de um elemento cultural que marcou minha adolescência: AS NOVELAS. Para ser exata: O Rei do Gado. Enquanto para mim a figura de Bruno Mezenga é a encarnação mais bacana de Antônio Fagundes, para meu colega do trabalho, apenas seis anos mais novo, Bruno Mezenga é um jogador do time de futebol Água Santa. Sim, tem um moço com esse nome. E não, meu amigo não fazia ideia de quem tinha inspirado o registro na certidão de nascimento.
Ele também não tem lembranças das corridas do Ayrton Senna. Nem de um tempo em que eu e minhas amigas, no auge da puberdade, fomos bombardeadas pelo ímpeto bizarro de saber se Sandy ainda era virgem. E se Luana Piovani tinha traído Rodrigo Santoro. E quem seria o colírio da Capricho daquele ano.
Para além dessas questões ~ importantíssimas ~, há também o descompasso socioeconômico e político. A memória dos alimentos sendo etiquetados nos mercados por causa da inflação galopante; de quando cortamos os zeros do Cruzeiro para dar lugar ao Real; das simulações que os jornais faziam do assassinato de PC Farias.
No entanto, existe um ponto em comum que eu considero essencial e talvez compense grande parte das diferenças: o amadurecimento durante o boom da internet — esse trator espantoso que passou por nossas vidas. Algumas vezes construindo coisas boas, como o acesso a pessoas e informações. E outras, destruindo conexões reais e nos afogando em conteúdo. Vimos o nascer dos chats, as ferramentas de mensagens instantâneas, os blogs, os fotologs e as primeiras versões das redes sociais.
A sensibilidade dessa geração millennial me parece estar no entre. Lembramos do antes das grandes transformações tecnológicas, aprendemos a lidar com elas enquanto aconteciam e agora tentamos dar conta dos saltos, mas nos sentimos inadequados. Como se tivessem corrido muito à frente do que somos capazes de entender. Tem um mundo ali que já não é mais nosso, que já atravessou a borda, que já está em outra geração. Representada por outra letra, por outros marcadores — tão questionáveis quanto os nossos.
Para quem lê em inglês, recomendo esses dois artigos sobre geração como contraponto às definições do Pew Research Center:
The New York Times: faz sentido categorizar as pessoas por geração?
The Atlantic: as linhas que dividem as gerações são uma invenção da nossa imaginação coletiva
Na semana passada, os apoiadores da newsletter receberam um vídeo no qual conto o processo da newsletter. Expliquei como chego aos temas e dei como exemplo este texto sobre geração que ainda estava sendo gestado ;)
O vídeo enviado no mês passado sobre como o estudo formal da literatura mudou as coisas para mim já está disponível para todos
Nasce a outra escritora
Será que um livro é ruim só pq eu não gostei?
Se eu vier homem — texto certeiro da
Era para ser canela, mas foi páprica
O ensaio Fazer canções
Brasil pros amigos gringos do Cauê — playlist boa demais feita pelo Moreno do
Torta de tomate e as formas de voltar para casa
Marca bacanuda de roupas para chefs de cozinha — via New Plan Journal
Queria ser grande, mas desisti também é livro \o/
E se quiser me acompanhar em tempo nada real: @babibomangelo
Trecho de Notas sobre o camp traduzido por Denise Bottmann, incluído na coletânea Contra a interpretação e outros ensaios, publicado pela Companhia das Letras.
o mais fascinante é que o bruno mezenga jogador de futebol não tem esse nome no registro civil. foi um técnico dele, professor de muitos brunos de uma geração em que esse nome era bem comum (ainda é? não conheço nenhum bruno criança hoje), que foi impactado pela novela como a gente (sério, muitos sentimentos!) e deu esse apelido na época em que ela estava no ar.
mas eu me pego pensando muito nessas coisas também, em até que ponto se definir como uma geração não é também um marcador de classe, por exemplo. penso ainda mais sobre como a internet mudou ao longo da minha vida nela, deixando de ser minha ilha da fantasia para se tornar um círculo do inferno de dante (com toques de um lugar de familiaridade e refúgio e estafa e desespero).
Que delícia e reconfortante encontrar textos assim por aqui.