Esta é uma edição especial <3 A newsletter chegou ao número 200 \o/
E para comemorar, compartilho com vocês o ensaio que venho trabalhando nas últimas semanas. Lembram que falei que estava pesquisando sobre mães que escrevem, seus métodos ou a falta deles? Pois bem, aqui está ;) Com direito à Zadie Smith, Shirley Jackson, Ursula K. Le Guin.
Aproveito para agradecer ao Felipe, que sempre me envia as melhores dicas e contribuiu especialmente com as informações sobre Shirley Jackson <3
ESCRITA DO ENQUANTO
You have to pick the places you don't walk away from - Joan Didion
Quase nunca escrevo sentada à mesa. Esse lugar sagrado, com cadeira confortável, luz que entra suavemente pela janela. Um tempo de paz, sem barulhos, apenas o fritar da mente. Isso não me pertence. Escrevo em meio a gritos de “mãe”, a pedidos por mais comida, nas horas livres do trabalho, na sala de espera do médico.
As palavras também não se encontram num lugar só. Ocupam notas no celular, áudios para mim mesma. Essa é a cara da escrita para muitas mães. Sem longos períodos de concentração, aproveitando qualquer mínimo espaço de tempo.
Tal malabarismo não é algo novo - mulheres são mães e escrevem há séculos -, mas, ainda hoje, unir a maternidade à escrita parece exótico. Um feito para poucas. Rebeldes, com certeza. O cenário com uma mãe que escreve não faz parte do repertório comum que vem à mente quando pensamos em alguém que está a construir um texto. Não, nas imagens românticas não há uma mulher que se reveza entre registrar uma ideia e ajudar o filho a vencer uma fase difícil no Super Mario Bros. E talvez por isso, por não nos sentirmos representadas, por achar que estamos o tempo todo desafiando o modo correto, tantas de nós ainda hesitem em se chamar de escritoras, em dar valor ao que fazem.
E não é que o nosso sistema caótico não funcione. Eu, por exemplo, publico textos semanalmente, escrevo artigos para o mestrado em literatura, traço esboços para ensaios como este. Mas, ainda assim, me sinto deslocada. Como se, pela impossibilidade de dedicação exclusiva, eu apenas estivesse tocando as superfícies dos temas que me são caros. Como se só pudesse encarar a escrita como hobby, já que escritores pra valer têm outra cara. Têm mesmo?
Foi assim que me vi digitando no Google: escritoras + mães. E logo encontrei uma polêmica que rodou o mundo da literatura em 2013. A jornalista Lauren Sandler lançou uma tese na The Atlantic — disse que a resposta para ser bem-sucedida como escritora e como mãe residia num número: UM filho apenas. Para corroborar sua tese, citou exemplos como Margaret Atwood, Susan Sontag, Joan Didion.
O conselho não caiu nada bem para mim, mesmo estando dentro da regra de Sandler. UM filho já foi o suficiente para romper as estruturas de tempo e espaço. Mas achei esse número especialmente terrível para as amigas que têm mais de uma criança. O sucesso não é possível para elas? A criatividade morre depois do segundo filho? Como ser tão taxativa quando existem infinitas formas de se envolver com a maternidade, infinitos modelos de rede de apoio, graus variados de dedicação à escrita?
No espiral de respostas à teoria de Sandler, lavei a alma quando vi a opinião de Zadie Smith, autora que tanto admiro:
Eu tenho dois filhos. Dickens tinha dez – acho que Tolstói também. Alguém por um momento se preocupou que aqueles homens estivessem se tornando muito paternais para serem escritores? O fato de Heidi Julavits, Nikita Lalwani, Nicole Krauss, Jhumpa Lahiri, Vendela Vida, Curtis Sittenfeld, Marilynne Robinson, Toni Morrison, e assim por diante, (eu poderia realmente passar o dia todo com essa lista) terem vários filhos as torna escritoras menores?
Girei minha bússola na direção de Smith e encontrei outra entrevista, anos depois, na qual ela conta sobre o episódio em que um escritor perguntou se ela, grávida de sete meses, não estava preocupada em ficar para trás. Ficar para trás. Como se a maternidade representasse um fim. Não, Zadie Smith não permitiu:
Cada vida que você vive dará material para ficção. Mas, considerando que eu tenho filhos, falo da experiência de ver as coisas simples da vida. É tão chato dizer isso, mas é extraordinário ver sua infância repetida, refratada, se ver dizendo coisas que seus pais disseram, estar nessa nova relação com a morte. Quando penso em escritores, eu realmente amo alguém como Ursula Le Guin, que teve três filhos e viveu uma vida inteiramente doméstica. Sinto seus filhos nesses livros, sinto que o peso disso, sua experiência de ser menina, mulher, mãe, velha, são quase esmagadores quando você a lê.
Eu concordo tanto. Ursula K. Le Guin se firmou na ficção científica - gênero dominado por homens - sem deixar de lado discussões sobre o feminino. Em Os despossuídos, por exemplo, as mulheres têm na maternidade apenas um entre muitos caminhos possíveis. E as que o escolhem são incentivadas a dividir com a comunidade os cuidados com o bebê. Um ato visto como natural e não uma forma de excluir as mulheres de lugares de poder. A mão esquerda da escuridão vai além: apresenta uma população com gênero incerto, que só migra para um dos polos em época de acasalamento. Daí um dos parceiros desenvolve os órgãos femininos e o outro, os órgãos masculinos. Mas pode ser que no mês seguinte, ou com um novo par, essa situação se inverta. Desse jeito, todos podem se tornar mães, e também pais. O trecho abaixo exemplifica bem os desdobramentos político-sociais dessa realidade biológica.
Considere: qualquer um pode trabalhar em qualquer coisa. Parece muito simples, mas os efeitos psicológicos são incalculáveis. O fato de toda a população, entre dezessete e trinta e cinco anos de idade, estar sujeita a ficar "amarrada à gravidez" sugere que ninguém aqui fica tão completamente "amarrado", como, provavelmente, ficam as mulheres em outros lugares - psicológica ou fisicamente. Fardo e privilégio são compartilhados de modo bem igualitário; todos têm o mesmo risco a correr ou a mesma escolha a fazer.
Fui, então, em busca de relatos de Le Guin sobre escrita e maternidade e encontrei o ensaio The fisherwoman’s daughter, de 1988, no qual ela questiona o argumento de Virginia Woolf de que uma mulher precisa um quarto ou um teto todo seu para escrever. A partir de seu próprio sentimento de inadequação, Ursula decide investigar onde as mulheres que são mães - ou cuidam de crianças - escrevem. Ao perguntar às amigas, recebeu a resposta nada inusitada de que elas o fazem sentadas à mesa da cozinha, com as crianças gritando ao lado. Essa, sim, uma imagem conectada à minha realidade. A diferença é que uso a mesa da sala, a única na casa e com ângulo privilegiado para o Joaquim.
Em sua pesquisa, Le Guin chega à Margaret Oliphant, prolífica escritora escocesa. Com três filhos e três sobrinhos para criar, Oliphant publicou dezenas de romances, centenas de artigos. Em sua autobiografia, deu detalhes de como se dava o fazer literário:
Eu não tinha mesa própria, muito menos um quarto para trabalhar, sentava no canto da mesa da família com meu caderno, com tudo acontecendo como se eu estivesse fazendo uma camisa em vez de escrever um livro.
No entanto, não há tom de reclamação. Oliphant acreditava que o ambiente movimentado, muitas vezes caótico, contribuía para o ofício e que romper com a influência doméstica poderia tornar suas palavras desconectadas da realidade.
Ainda que eu sinta inveja de quem supostamente tem mais tempo, não menosprezo o que a maternidade e a vida doméstica me trouxeram. O que acrescentaram à minha escrita. Enquanto levo meu filho para a escola, tropeço em perguntas e afirmações inesperadas. Frescas. O ato de responder, explicar fenômenos para uma criança de cinco anos me estimula de formas difíceis de definir. Talvez só caindo num clichê: volto a ser criança. A ter curiosidade por questões que tinham se tornado banais.
Quem também se negava a dissociar a vida doméstica da escrita era Shirley Jackson. Fiquei obcecada por ela depois de ler o conto A Loteria - que, em 1948, fez transbordar a caixa postal da New Yorker com tantas respostas dos leitores. Jackson teve a ideia do conto enquanto estava no mercado com a filha de dois anos. Voltou para casa, guardou as compras e, enquanto a filha brincava no cercadinho e o filho mais velho estava na escola, escreveu a história de uma vez. Romântico demais? Com certeza. E não resultado apenas de uma criatividade borbulhante, mas também fruto da necessidade. Se não for para ter ideias durante os afazeres e escrever nas brechas dos cuidados com as crianças, quando? “Todo o tempo que estou arrumando a cama, lavando a louça e dirigindo até a cidade para comprar sapatos de dança, estou contando histórias para mim mesma”, declarou Jackson.
Esta frase me lembrou de Giovana Madalosso compartilhando sobre seu processo criativo:
Quem dera eu pudesse ter um horário escolhido por mim. Tenho uma filha de sete anos, então meu horário de trabalho é o do enquanto. Enquanto ela está na escola, enquanto ela vê tevê, enquanto ela dorme. Nesse contexto não há muito tempo para rituais, mas claro que algumas drogas psicoativas (de mãe) ajudam: chocolate, café, Coca-Cola.
A escrita das mães acontece no enquanto.
Ler sobre a gincana de muitas mulheres não resolve a falta de tempo, a angústia, mas faz com que eu derrube o resto do idealismo que ainda alugava um espaço na minha cabeça. Agora, duvido da escrita tranquila, concentrada. Livre de turbulências. Existe, sem dúvida, mas não acomete ninguém que eu conheça. Ninguém minimamente parecido comigo. Por que, então, mirar numa rotina assim? A vida que eu levo me serve bem — com malabarismos e frustrações, mas também cheia de tecido criativo.
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E se quiser me acompanhar em tempo nada real: @babibomangelo
Babi, acho que esse texto se tornou um dos meus favoritos escritos por você. Eu não sou mãe, e também não sei se pretendo ser um dia, mas sua reflexão me levou para um lugar muito interessante de desmistificação. A "regra" colocada por Sandler do 1 filho e o (suporto) sufocamento criativo pela vivência doméstica me fez pensar nem ao menos se permitem escrever (ou se entregar a qualquer tipo de arte). Penso na quantidade de barreiras que a sociedade vai colocando na nossa frente e começamos a acreditar verdadeiramente que elas existem. Algumas, sim, existem, porém outras parecem ser exclusivamente para nos levar a um canto, com apenas um papel a exercer e nada mais. No fim, me agarro à crença de que não existe uma mesa de escrita perfeita e que devemos desafiar o ~modo correto~ dia após dia. Obrigada por esse texto <3
Babi, que texto incrível. Amei. Uma das minhas questões com a maternidade - sem nem ainda a ter/ser - era como seria o pós e a escrita. Me ocorreu que me transformaria e me levaria para lugares que sequer imagino, portanto me faria maior. Saberei um dia, talvez. Há também uma ideia de que o ambiente doméstico (e seus afazeres), por ser associado ao feminino, não é espaço de criatividade; como se fosse banal demais, de baixo intelecto. Quantas coisas não foram criadas, na arte e fora dela, justamente pela vivência da vida, família, lar, não é?