Eis que no dia 6 de setembro, uma sexta-feira, recebi um pacote. Veio com a embalagem típica dos embrulhos de livro da Companhia das Letras, mas, ainda assim, não suspeitei do conteúdo. Talvez o novo da Lilia Schwarcz ou Casa de família, da Paula Fábrio. Não. Nenhum dos dois. Logo que cortei o plástico, vi um azul reluzente. O azul de Sally Rooney e seu Intermezzo, traduzido por Débora Landsberg. Tremi porque não é todo dia que alguém como eu recebe uma cópia antecipada de um lançamento literário mundial. Alguém como eu = pesquisadora da obra dela e em processo final da dissertação de mestrado. Bacana demais. Surreal pra caramba.
Foi assim, cercada de empolgação e de um tantinho de desassossego, que comecei as primeiras páginas. Não é fácil entrar numa história quando se está transbordando de expectativa. E eu tinha muitas. Não morri de amores pelo romance anterior, Belo mundo, onde você está?. O que esperar deste, então? Nada e tudo. Tensão de leitora. Uma bobagem para quem vê de fora, mas muito real para quem sente.
Mas bastou avançar um pouco para ser envolvida por Intermezzo. Por Peter, o mais velho da dupla de irmãos. A voz dele atravessando o narrador o tempo inteiro. Apagando a diferença entre o que é só pensamento e o que realmente saiu da boca dele. Uma profusão de reflexões que pulam de uma para outra sem aviso, assim como é a nossa mente: uma baguncinha caótica, mas reconhecível. E Peter pensa/fala enquanto anda por Dublin. Registra as ruas, as pessoas que cruzam seu caminho. Faz lembrar do ritmo frenético da mente de Leopold Bloom, em Ulysses, de James Joyce. A capital da Irlanda como personagem em meio às angústias que o caminho desperta. A lembrança do luto pelo pai e também o luto por um relacionamento que não pode mais ser o que era. A ausência do sexo como ponto de distúrbio. De afastamento. Uma decisão mútua, mas que nenhum dos dois consegue bancar em definitivo. Sylvia, a mulher perfeita em tudo — menos na necessidade que ele não consegue reprimir. E é isso que o atrai em Naomi, dez anos mais nova. Mulher jovem, sensual, feliz e também cheia de problemas, à espera do resgate. Financeiro. Uma relação manchada pelo dinheiro. Ele se achando muito superior, para depois sentir nojo de si mesmo.
E aí temos Ivan, o irmão mais novo. Considerado inadequado socialmente. Incapaz de se envolver com as mulheres. Se envolver como se deve, como todos esperam que seja. As interações básicas são um mistério para ele. Prefere o xadrez à vida. O xadrez tem regras claras. A vida, não. Mas já não joga como antes. O luto o afetou, fez com que disputasse menos partidas. Não é mais um gênio. Então, o que sobra? Não tem o pai, não tem mais a casa da família e nem a convivência com o cachorro. Se ressente do irmão, do tanto que Peter navega entre as pessoas sem atritos, de como espera pouco dele. Sufocado pelas dúvidas de como existir direito, Ivan conhece Margareth, de 36 anos, treze a mais do que ele (e no mundo de Sally Rooney, trinta e tantos anos parecem uma idade altíssima). Recém separada, ela logo cede aos flertes atrapalhados. Por querer se sentir bem de novo, mesmo que por pouco tempo. E sem planejar, meio desavisada, Margareth encontra em Ivan uma boia de salvação. E celebra “a sensação física simples de estar de novo no mundo: renovada, como se depois de uma longa ausência”.
Intermezzo traz essas novas histórias, mas ainda carrega os elementos pelos quais Sally Rooney ficou conhecida. Os diálogos sempre afiados; a reprodução de mensagens de texto costurada de forma orgânica à narrativa; discussões de fé, de como conciliar crenças diante da realidade bruta; conversas sobre arte, música, literatura e política. Há, por exemplo, muitas menções à crise de moradia em Dublin, que tem como cara mais recente os alugueis exorbitantes e os despejos ilegais de inquilinos. Rooney escreveu um artigo apaixonado sobre a questão em 2023 e agora vemos o trabalho literário que fez em cima do tema. Bem sucedido, na minha opinião. Aparece na trama não só como aceno ao momento histórico, mas como motor para alterações na dinâmica entre os protagonistas. No entanto, outros comentários políticos soam jogados. Parecem uma bandeirinha que a autora acena para dizer “olha como eu me importo com isso”. Nós sabemos. Vimos isso em Conversas entre amigos e Pessoas Normais.
Ainda assim, nada que manche o amadurecimento da escrita de Sally Rooney, visto principalmente no refino da narração, que oscila bastante entre as personagens, entregando o que cada uma precisa. Em Peter, mais fragmentada. Em Ivan, mais organizada. Quando há um desequilíbrio na saúde mental de um deles, temperado com o uso inadvertido de remédios, isso se torna perceptível no ritmo e na construção do texto. Algo que se não for feito com cuidado pode acabar muito mal, mas Rooney escapa da armadilha e mantém a qualidade até o fim. E aqui é importante destacar o ofício da tradução. Na comparação com os trechos em inglês já divulgados do romance — em texto e audiobook —, dá para ver como Débora Landsberg se preocupou com a cadência da escrita.
Enfim, é um livro que tem gosto original e que te leva de uma página a outra, ora num fluxo acelerado, ora numa narrativa mais convencional. Como se abrisse respiros para depois empurrar o leitor — que sempre termina os romances de Rooney com o coração apertado, torcendo para que venham muitos outros. E o mais legal é quando eles surgem assim, com avanços de técnica. Como um lance inesperado, como um intermezzo.
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No dia 24 de setembro, estarei ao vivo lendo as primeiras páginas de Intermezzo, novo romance de Sally Rooney
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