Tenho lido sobre o espaço e o tempo na literatura. Sobre como esses dois fatores combinados definem toda a narrativa. Não se trata apenas do momento histórico em que se passam as ações das personagens, um ano e um país específico, mas também as escolhas “menores” do autor a respeito do desenrolar do tempo, dos ambientes para cada encontro, para cada reflexão.
Como é a evolução desse tempo, com qual velocidade se expande ou se contrai? É medido em termos genéricos - tais como dali uns dias, tempos depois, de uma hora para a outra? Ou a exatidão é essencial para a história? O tempo tem um aspecto cronológico, sem omitir grandes períodos da vida da protagonista? Ou ele é fragmentado, episódico?
E o espaço? As interações acontecem em ambiente doméstico, num campo de batalha ou ao longo do caminho, da estrada? Há contrastes entre espaços com energias opostas, como uma cidade pequena e um grande centro urbano? Os encontros são em espaços públicos, movimentados? Ou em locais íntimos?
A análise conjunta do espaço-tempo tem nome e sobrenome: é o cronotopo de Mikhail Bakhtin. É com essa lente teórica que tenho relido os romances de Sally Rooney, autora que estudo no mestrado. Agora, pulam das páginas trechos que nunca tinham me chamado atenção, abrindo, assim, novas possibilidades de interpretação.
Tem sido inevitável também aplicar essa ferramenta aos livros que leio por prazer. O segundo volume de Guerra e Paz, de Tolstói. O lugar, de Annie Ernaux. Em breve Ao paraíso, de Hanya Yanagihara. Ficarão cheios de grifos aparentemente aleatórios, mas que adicionam uma camada extra à experiência. Leitura é exercício.
Hoje, quem compartilha a lista de leituras transformadoras é a Roberta Viscardi, pesquisadora, tradutora e a mente por trás da Literária, um dos melhores lugares de cursos de literatura. Ela não é de aparecer muito nas redes sociais, mas é impossível não se apaixonar depois de ver como ela coordena as aulas e faz apontamentos instigantes, que te levam a querer se aprofundar mais e mais.
Vidas secas, de Graciliano Ramos
“Se nada substitui o que a gente sente durante o primeiro contato com o texto e o primeiro encontro com a família de Fabiano (incluindo a cachorrinha Baleia, claro), o adensamento desse contato se aprofunda e nos transforma a cada leitura. Toda vez que eu volto a Vidas secas, o romance me parece mais curto, mas também parece me dizer mais. Quando sinto que aquelas palavras estão muito distantes, leio o livro de novo, que é para ele ficar um pouquinho mais comigo e me botar pra pensar mais uma vez. Tendo a ter certa dificuldade para escrever, então a concisão do Graciliano também me inspira a encontrar – nesse texto bastante lapidado, mas imenso – maneiras diferentes de me expressar.”
O grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald
“O grande Gatsby é um favorito de muita gente, e por motivos muito diferentes. Meu primeiro encontro com ele se deu numa madrugada de férias em que assisti a um filme que ficou gravado na memória como ‘aquele filme de verão com o Robert Redford’. Pouco tempo depois, li o romance em uma disciplina da faculdade, e quando estava me preparando para o mestrado em literatura, esse foi o título que figurou no topo da minha lista de interesses. Eram muitos caminhos a seguir, e o caminho que levava aos anos 1920 me chamou mais forte. A experiência com esse livro não foi de arrebatamento à primeira leitura; minha relação com o texto do Fitzgerald foi construída no gosto meio inexplicável pelo que não estava dito ali, pelo que era apenas sugerido e na vontade de extrair mais dele, na curiosidade que move a pesquisa, na negociação da incompreensão e nas inúmeras leituras que se seguiram. Como continuei inquieta, decidi seguir com o romance como um dos objetos da minha pesquisa de doutorado, quando a extensão da fortuna crítica de uma obra tão lida e comentada deixou de me assoberbar. Por causa desse romance, sigo dialogando com pessoas interessadas em todas as possibilidades e idiossincrasias do texto quase cem anos depois, e seguimos descobrindo ainda mais nele e sobre ele.”
Linha M, de Patti Smith
“Esse livro, para mim, caminha de mãos dadas com Só garotos porque foi assim que eu os li: praticamente juntos. Eles me fizeram companhia num momento muito difícil anos atrás, e aplacaram a solidão desse período de uma forma que só os livros conseguem. Comecei essa jornada com Só garotos, passeando por Nova York todas as noites com a Patti e o Robert, descobrindo uma cidade nova por meio das histórias de pessoas que pareciam ir se tornando, conforme eu virava as páginas, minhas amigas. Fechei Só garotos e imediatamente abri Linha M porque eu percebi que ainda não estava pronta para seguir sem a companhia da autora – eu queria continuar vendo e sentindo o mundo pelos olhos e as palavras dela. E se o que eu esperava era outro passeio, o que esse livro me ofereceu foi uma baita viagem. Prefiro nem escrever muito sobre ele para deixar quem ainda não o leu com muita vontade de sair correndo e folheá-lo agora, mas posso adiantar que a forma artística dessa obra se abre como um novo mundo à nossa frente.”
BÔNUS: “Inspirada pela leitura do discurso da Ursula K. Le Guin que você indicou há algumas edições da newsletter, pensei que não podia deixar de fora desta pequena seleção da minha biblioteca afetiva o discurso da Toni Morrison para o prêmio Nobel de literatura de 1993. Parte dele foi publicado na tradução do Odorico Leal em 2020 no livro A fonte da autoestima, e o áudio do discurso completo está disponível aqui. O trecho disponível em português é justamente o “Era uma vez...” que abre o discurso da Toni.”
Queria ser grande, mas desisti também é livro \o/
E se quiser me acompanhar em tempo nada real: @babibomangelo
Você e a Carol estão me fazendo olhar para o mestrado como nunca antes. haha dá até comichão.
Tá um perigo essas últimas edições. Tá dando uma vontade de voltar a estudar! ♥️