A maioria das histórias constrói a dinâmica do amor com o ápice lá no finzinho. Na última cena. A declaração tão aguardada, o beijo pra selar o rolê. E fim. Nós que imaginemos o resto. E como fomos treinadas para isso, não? Para esta estrutura: a inexistência de qualquer sentimento → a pontinha de carinho que começa a surgir → a percepção de que já era, evoluiu para paixão/desejo → o que faço com isso? como demonstrar? serei correspondida? → a coragem vem (alguns obstáculos também) → e aí o desfecho tão esperado ou a desilusão amarga. Harry & Sally é assim. Mensagem para você, Sintonia de amor, 10 coisas que eu odeio em você… e uma galera de outros filmes. Todos têm aquela sensação de conforto, de saber que é só esperar que já já o incômodo se ajeita. É por isso que não saem do topo da lista de mais revistos. Certezas e caminhos conhecidos vão muito bem diante de tanta indefinição na vida. Mas com o tempo — e um certo enjoo do mesmo esquema narrativo — vem a percepção de que a dúvida e a irresolução geram também grandes histórias de amor. Daquelas que assombram, daquelas que a gente vê repetidas vezes não porque dão um sentimentozinho bom, mas porque mostram uma angústia já experimentada. Porque o amor e o desejo têm mais desencontros do que quaisquer outras coisas.
Eu escrevo isso escutando a trilha de Amor à flor da pele, de Wong Kar-Wai. Um filme terrível de lindo sobre um amor que nunca se consuma pra valer (pelo menos não no vídeo). Não porque uma das partes não quer. As duas querem, mas há uma impossibilidade. Os dois fizeram a promessa de que se portariam diferente dos parceiros que os traíram. E agora estão ali, sempre num quase, com uma relação já construída, praticamente sem toques, praticamente na base da imaginação, do que seria, de como seria. A
escreveu sobre os filmes do diretor e fez comparações com um par dançando tango:Para além das acrobacias, a dificuldade real do tango está de novo nesse paradoxo, em você ter que criar harmonia de duas coisas que se movem em contradição, de um jogo de passos em que sempre que um avança, o outro afasta, em que torsos não podem se afastar, mas pernas nunca se encontram.
Passei os minutos todos torcendo para que algo acontecesse entre aqueles dois, entre as nuvens da fumaça de cigarro ou entre o vapor do lámen, mas ao mesmo tempo torci para que permanecessem como estavam ou quebrariam algo muito importante que definiram para si mesmos. Nem todo desejo é passível de resolução.
Vidas Passadas, de Celine Song, é na mesma pegada. Uma tensão e uma beleza constantes de um amor que perdeu o momento certo. E tem também a canção Ankles, de Lucy Dacus, com uma letra todinha para fantasiar sobre uma relação que talvez não não saia disso, da cabeça:
What if we don't touch?
What if we only talk
About what we want and cannot have?
And I'll throw a fit
If it's all I can do
If it's the thought that counts
Let's think it throughE se a gente não se tocar?
E se a gente só falar
Sobre o que a gente quer e não pode ter?
E aí eu faço birra
Se é tudo que eu posso fazer
Se é o pensamento que conta
Então vamos pensar nisso direito
O álbum inteiro tem essa aura daquilo que poderia ser, mas não é. Olha só esse trechinho de For Keeps:
We were not something
We were not nothing
We were in between things
That made sense
But you wanted it
And I wanted it
And that's the only thing
That matterеd in the endNós não éramos alguma coisa
Nós não éramos nada
Nós estávamos entre as coisas
Que fazem sentido
Mas você queria
E eu queria
E essa é a única coisa
Que importou no final das contas
Nesses trechos todos, nessas histórias todas só resta pensar, imaginar, construir cenas que não vão se realizar, mas que trazem alívio porque se sabe que a fabulação acontece a partir de algo que existiu — não tomou nenhuma forma convencional de relação, mas existiu. E isso é o suficiente, precisa ser o suficiente, e pode até ser mais forte e mais real.
Esta edição faz par com aquela sobre notas mentais do apaixonamento. Estou de olho no que é que me pega em histórias de amor. Por que umas são tão cativantes e outras não me pegam de jeito nenhum? O que elas têm? O que elas registram? O que delas fica em mim?
A estética de Amor à flor da pele que marcou uma geração de cineastas — lindo artigo da New Yorker, cheio de fotos e análises
Lucy Dacus explicando a letra de Ankles <3
Amor e desejo não são a mesma coisa
Minha ideia de amor é uma amizade radical
Começar a escrever um romance às quatro da manhã; ou amar o que não existe
Escrita como obsessão — tô aqui deixando meu pedido para um livro de ensaios da Isa Sinay \o/ me identifiquei TANTO com a última edição
escreveu sobre a leitura de Orbital, de Samantha Harvey e tradução de Adriano ScandolaraSexta-feira em São Paulo tem este encontro bacanérrimo de escritoras <3
Fazendo coisas com as mãos
As irmãs Haim no divã da Bella Freud — e um parênteses, tenho uma paixão em comum com Bella Freud: Francis Bacon (a pintura no escritório dela é um sonho de consumo)
Pensando em usar este chapéu no trabalho
Uma dica que adorei:
Os apoiadores da newsletter receberam um vídeo longuíssimo com os meu FAVORITOS: filmes, séries, podcasts, jogos de videogame e novelas <3
Um mês depois, liberei o vídeo anterior:
Lendo no momento:
Terminando Os funcionários, de Olga Ravn e tradução de Leonardo Pinto Silva — eu tinha tentando uma vez sem sucesso, mas agora, depois de ler Orbital, o impacto foi outro (obrigada pelo empurrão,
)O colibri, de Sandro Veronesi e tradução de Karina Jannini — que história (e que construção) boa!
Quero ver se começo no feriado A cidade e a cidade ou Surazo. Terei esse tempo em meio a um monte crianças correndo em volta?! Façam suas apostas!
Queria ser grande, mas desisti também é livro \o/
E se quiser me acompanhar em tempo nada real: @babibomangelo
❤️ Ansioso pra saber o que você achou de Os Funcionários nessa segunda tentativa!!
Eu amo histórias impossíveis - ou sem o que a gente entende como "normal" de se ter o final feliz, consumado. Gosto da trilogia completa do "Antes do Amanhecer", mas especialmente o primeiro. Apesar de eles passarem a madrugada juntos, aquilo não "virou" nada e continuou perfeito ali, na história dos dois.
Sobre as músicas: lembrei de um álbum que o Ben Folds fez com o Nick Hornby (Alta Fidelidade), chamado Lonely Avenue, em especial a música From above - fala de um casal perfeito, mas que nunca se conhece. A letra é maravilhosa demais, vale conferir!
Gostei demais do texto e estou com mais vontade de ler Orbital agora - O Colibri está na minha lista (em sétimo, talvez rsrs).