Quando criança, eu tinha um copo de estimação. Ele morava na casa da minha avó e parecia ser daqueles americanos, só que achatado e de vidro bem grosso. Fazia da água gelada a melhor coisa para se beber e, por isso, era tão disputado. Ele não pertencia a jogo algum. Talvez fosse um sobrevivente. Talvez a caixa com seus parentes tenha se espatifado durante a faxina num dos armários. Ou quem sabe era o filho único na prateleira do mercado, naquelas seções em promoção, dos indesejados, dos quase expirados. E ele realmente tinha uma lasquinha na beirada, mas já bem lisa, sem riscos à boca. É, tinha sido isso: ele estava com defeito e minha avó pagou centavos para trazê-lo pra casa. Não quis colocar a história à prova — naquela época parecia que eu podia chegar à verdade apenas traçando hipóteses, confrontando com pistas que considerava importantes. Inventei explicações para muitas coisas seguindo essa fórmula. E em quase todas precisei recalcular a rota. A biografia do copo, por exemplo, sofreu uma reviravolta inesperada e levou junto a imagem de moça comedida que eu tinha de minha avó Maria Helena.
Tudo se deu num restaurante de beira de estrada, a caminho do sítio do meu avô. Era um lugar que íamos com frequência, com mesas compridas para abrigar grandes famílias. Com toalha xadrez, pratos brancos de bordas pesadas… e um copo baixinho, robusto. O meu copo. Ali, deslocado no universo. Quando fui apontar a coincidência, percebi que minha avó também olhava para ele e, num movimento rápido e furtivo, jogou o guardanapo por cima do vidro, embalou como se fosse uma maçã e colocou na bolsa. O copo. O meu copo. Ele não era um sobrevivente, um filho único. Ele era um objeto sequestrado. E dona Maria Helena, uma transgressora.
Em vez de me desagradar, a descoberta me fez gostar mais dela. Aos nove anos, já me incomodava o modo como a descreviam: discreta, paciente, quase invisível numa casa que era preenchida pelas ordens do meu avô. Ele era difícil e ela, a parceira perfeita para aguentá-lo. Eu, na minha precoce predileção por mulheres rebeldes, detestava aquilo. Por que ela nunca respondia? Por que não era mais parecida com a minha mãe, que um dia pegou as coisas e foi embora? É, eu ainda não sabia como era difícil decidir quebrar tudo, romper com todos. Mas agora pelo menos eu tinha um elemento novo sobre minha avó. O roubo do copo levantou a bandeira de uma vida interna que ela não revelava a ninguém. Talvez um tanto turbulenta, perigosa. Anotei a hipótese e a prova e fiquei esperando por mais. Eu queria muito mais.
***
Foi lendo Bruna Mitrano que veio a vontade de escrever sobre minha avó. O poema-gatilho, que transcrevo abaixo, está em Ninguém quis ver — das melhores leituras deste ano:
nome próprio
o vassoureiro
o moço da pipoca
o feirante
o catador de latinhas
a voz do carro do pão
o rapaz morto ontem
o garçom
o motorista da van
o camelô
não têm nome próprio
os animais de rua também
não têm nome próprio
não ocupam cargos públicos
a mulher nunca tem nome próprio
é a mulher do Fulano
a minha avó não teve nome próprio
os filhos a chamavam de mãe
eu a chamava de vó
e ela sempre atendia
a minha avó me ensinou
a atender prontamente
e a morrer sozinha
ela também me ensinou
a degolar franguinhos
e que as mulheres são sempre
propriedade de alguém
menos as que matam o marido
e fogem com a cabeça
numa sacola de mercado
essas ganham nome
nos jornais
e ameaçam o anonimato
das mulheres que em breve
vão aprender
a degolar franguinhos.
O meu copo era parecido com este aqui.
Um livro que fala de transgressão: Lutas e metamorfoses de uma mulher, de Édouard Louis, traduzido por Marília Scalzo
Dos que falam e dos que calam
A nova crônica é digital e feminina <3
O retrato que guardava um segredo
Anotações em fotos — fiquei com muita vontade de fazer também <3
Por que os filmes parecem diferentes agora? Uma análise bacana partindo de Top Gun
Uma newsletter que me faz rir é a da
— esta edição sobre o que fazer com um adolescente de 16 anos é boa demaisEsta música <3
Na última edição para apoiadores, mandei um inventário de inspirações. A recepção foi tão boa que vai aparecer com mais frequência. Você pode espiar aqui <3
Queria ser grande, mas desisti também é livro \o/
E se quiser me acompanhar em tempo nada real: @babibomangelo
Que maravilhoso o texto sobre o sequestro do copo! Amei estar numa edição com esse texto e esse poemão da Bruna <3
Amei o sequestro do copo, achei inesperado haha. E que poema lindo! Obrigado por compartilhar :)