Na minha turma do colégio, quatro ou cinco pessoas tinham perdido o pai. Era uma informação que corria logo. Você entrava na escola e já apontavam quem eram aqueles que enfrentaram o inominável. Inominável mesmo, porque não se falava abertamente sobre isso. Ninguém sabia a causa das mortes e isso tornava tudo mais assustador. Será que pais sempre morriam desse jeito, de um mal secreto e sorrateiro?
Eu tinha curiosidade de saber a realidade das casas atingidas pela praga. Meus amigos tinham mudado bastante desde então? Carregavam uma ferida aberta? Como era sentir tanta dor? Não precisei esperar muito para descobrir. Um mês depois de eu completar 18 anos meu pai morreu. E uma das primeiras coisas que pensei foi que não queria ser tratada como os outros integrantes do clube dos sem pai. Não queria que falassem de mim aos cochichos e com pena. Não, aquilo não ia me traumatizar. Lembro que, no dia do velório, amigos ligavam e me perguntavam com que roupa deveriam ir. No Brasil também se vestia preto? Talvez sim, mas num ato de resistência, resolvi colocar uma camiseta rosa-choque. Eu vestiria o luto de forma diferente. E também foi diferente o jeito como encarei a missa de sétimo dia. Não me recolhi depois da prece final. Pedi para ir ao bar com meus amigos. Para ouvir vozes, me sentir cercada de vida. Era isso, esse era o plano: a vida seguiria como antes.
Para ter sucesso nessa missão, a ferramenta que escolhi foi falar abertamente sobre meu pai. Sobre a morte. Falava o tempo inteiro, para quem topasse ouvir. Às vezes motivada por um impulso genuíno, mas outras tantas pelo esforço de parecer madura. Olha, ela passou por uma perda, mas lida bem, que bacana.
Assim, eu controlava a visão que tinham de mim. Só que controlar, não é resolver. É deixar adormecer. E uma hora aquilo que é abafado desperta.
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Hoje, com menos vontade de me mostrar inatingível, consigo perceber as marcas que ficaram. Por causa da minha personalidade combativa, elas não aparecem na superfície. Preferem caminhos discretos, sorrateiros como as mortes do clube dos sem pai.
Um desses sinais é o pavor de receber ligações. Vejo o nome da minha irmã piscar na tela do celular e meu coração dispara. O que foi? Está tudo bem? Fala logo o que é. Penso que será o anúncio de uma tragédia ou de uma nova doença. Não esqueço o gosto de quando as ligações foram realmente sobre isso.
E nos últimos meses outro pensamento tem me acompanhado: será que vou viver até a idade com que meu pai morreu? Ele tinha 45 anos, eu farei 37 daqui uns dias. Enquanto amigos ultrapassam os 40 com sentimentos ambivalentes, eu choro de desejo, de inveja. É tudo que eu quero — envelhecer, ultrapassar esse marco que me assombra.
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No fim de semana, revi Interestelar, um dos meus filmes preferidos. Há nele muitos trechos que me emocionam. Um deles é este abaixo, quando o pai se despede da filha:
Depois que vocês nasceram, sua mãe disse algo que nunca entendi. Ela disse: “agora, só estamos aqui para sermos lembranças para os nossos filhos”. Acho que agora sei o que ela quis dizer. Quando você é pai, você se torna o fantasma do futuro de seus filhos.
E outro momento é quando Cooper, que está viajando pelo espaço, recebe o vídeo em que a filha conta que está fazendo aniversário, o dia em que ela atinge a idade que o pai tinha quando se viram pela última vez:
Eu nunca gravei uma mensagem quando você ainda respondia porque estava brava por você ter partido. Aí, quando você ficou em silêncio, parecia que eu deveria viver com essa decisão. E vivi. Mas hoje é meu aniversário. E este é especial porque você me disse... Você disse um dia que, quando voltasse, poderíamos ter a mesma idade. E, hoje, tenho a idade que você tinha ao partir. Então, seria uma ótima hora para você voltar.
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Caso tenha sobrado curiosidade por aí, meu pai morreu enquanto dormia. Num dia normal, sem qualquer aviso. Possivelmente de uma arritmia. E desde então ele é o meu fantasma mais querido.
Depois de Interestelar (na HBOMax e no PrimeVideo), meu plano é rever A Chegada <3 Se você ainda não viu, recomendo demais. Está na Netflix.
Godot não virá
Anatomia da ausência
Um NÃO desarticula o mundo
As amigas salvam a gente
Quem tem tempo para escrever?
Uma newsletter que gosto:
O que estou lendo:
As raízes do romantismo, de Isaiah Berlin — teórico gostoso de ler, sabe?
The Happy Couple, de Naoise Dolan — escrita rápida, irônica e com ótimos comentários sobre relacionamentos
Mês passado, enviei para os apoiadores da newsletter um vídeo com o registro de apresentações que fiz da pesquisa do mestrado. Agora, já está liberado para todos. O próximo envio será sobre os livros que quero ler assim que entregar o relatório de qualificação. Estou sonhando com dias de descanso da pesquisa \o/
E teve também um podcast intimista — disponível só os apoiadores — sobre o Bloomsday, Virginia Woolf e outros eventos literários de junho.
Queria ser grande, mas desisti também é livro \o/
E se quiser me acompanhar em tempo nada real: @babibomangelo
eu tive um lance engraçado quando completei 29 anos, a idade que meu pai tinha quando eu nasci. perguntei para ele como era ser pai de uma pessoa de 29 anos e ele só riu na minha cara e disse que era igual a ser pai de uma pessoa com todas as idades que eu já tive.
não entendi essa, deixei na conta da resposta poética, para eu continuar revisitando pelo resto da vida.
enfim... adorei o texto. também amo Interestelar e revi o filme no avião, da última vez que fui ao Brasil. é uma escolha maluca de filme para ver nessa situação,mas caiu bem.
abraço!
ps: obrigada por linkar meu último texto ❤️
Oi Babi, seu texto (mais uma vez) me tocou muito, principalmente pelo momento que em estou vivendo (o luto). Consigo te entender perfeitamente quando fala do pavor em receber ligações, vivo esse "trauma" também. A chegada é um dos meus filmes preferidos, e Interestelar ainda não assisti, mas não é a primeira vez que vejo citação deste techo que citou texto e que tenho vontade assistir, vou aproveitar e matar essa vontade hoje. Obrigada pelo texto. Um beijo.