Ilustração de Pia Valentinis
Avancei pelas primeiras páginas de O que é meu, de José Henrique Bortoluci, como quem apenas observa a história dos outros. A começar pela dinâmica entre pai e filho, que me interessa muitíssimo, mas sempre será língua estrangeira para mim. E depois, o eixo seminal do ensaio de Bortoluci: a estrada — um não-lugar que conheceu pelos relatos que o pai, também José, trazia das viagens de caminhão. Eram contos de um Brasil distante, que assumiam um ar fantástico diante do que ele, menino, vivia no interior de São Paulo, à espera desse homem que mais ia do que voltava.
Elementos que, numa análise apressada, poderiam render uma leitura apartada de quem sou, da criação que tive, mas a cada página fui deixando a condição de mera espectadora. Me vi no incômodo do autor com o léxico que invade a rotina quando alguém que amamos enfrenta o tratamento de um câncer. “A doença não é apenas um fenômeno biológico, é também um novo reino de palavras, um emaranhado de vocábulos e expressões que colonizam nossa linguagem cotidiana”. No caso de Bortoluci, a doença atingiu o pai, por aqui foi minha mãe. Dois cânceres de mama combatidos com cirurgias e sessões de quimioterapia. Naquele tempo me sentia como numa cobertura de acidente aéreo, quando nós, jornalistas, passamos a saber — em detalhes — a importância do grooving na pista e do reversor que ajuda a brecar o avião.
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E ao lembrar de minha mãe, recuperei também a memória de meu avô Sebastião. Caminhoneiro. Assim como José Bortoluci, o Jaú, a figura central do livro. Não ter conectado os dois de imediato é sinal incontestável do desparecimento, do descaso com a experiência deles diante do culto ao que se convencionou a chamar de sucesso: “biógrafos não se debruçam sobre a vida de pessoas como ele, trabalhador, homem comum, que pouco leu e escreveu, que não liderou corporações, não comandou exércitos, não governou países ou conquistou territórios".
Eles não aparecem em relatos públicos, em produções culturais e às vezes nem mesmo nas histórias compartilhadas em família. Ouvi muito pouco sobre meu avô. Ele morreu quando eu tinha quatro anos e só me recordo do apelido carinhoso que recebi: Barbica. O causo que meus tios repetem sobre ele e a estrada também tem a ver com nome. Em uma das viagens por Goiás se encantou com a cidade de Alexânia e decidiu pegar o nome emprestado para a quinta filha. É isso. Só isso? Será que, assim como Jaú, viu Brasília em construção? Conheceu também a Transamazônica — essa rodovia inacabada, uma empreitada megalomaníaca?
Eu conheci. Há muitos anos, produzindo reportagens especiais sobre a Amazônia. Durante horas e dias, percorri trechos da rodovia, que é mais lama do que caminho. Numa dessas vezes, cheguei à cidade de Lábrea, no Amazonas, onde a Transamazônica tem um fim abrupto, à beira do rio Purus. Deveria ter atravessado o Peru e o Equador, até chegar ao Oceano Pacífico, mas no lugar da continuação da estrada, uma ponte ou uma balsa, encontrei uma grande casa transformada em pizzaria.
O que ainda lembro de lá fez eco com a escrita de José Henrique Bortoluci, com a costura entre os dias do pai na região Norte e a história de ocupação da floresta:
A Amazônia segue como um enorme desconhecido no restante do país, um Congo Belga interno a serviço das fantasias perversas de um rei Leopoldo urbano e litorâneo. A região é a grande vítima física e simbólica dessa espécie de orientalismo à brasileira, e a Transamazônica, uma das canhestras tentativas de realizar o sonho secular de “colonizar” a imensa floresta […]
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É diferente a experiência de conhecer o Brasil como jornalista. Um tanto irreal. Não só por estar sempre de passagem, com olhar de visitante, mas também porque a linguagem do noticiário não dá conta do dia a dia. É preciso escolher um recorte, quase sempre fora da curva, e, portanto, distante da vida que ali se dá. A reportagem se ampara em dados, em mapas, em entrevistas com o poder público. O texto assume um caráter formal, com som de autoridade e, assim, muito se perde.
José Henrique Bortoluci entende desse abismo. Doutor em sociologia, ele assume sem constrangimentos que o vocabulário acadêmico não consegue nomear o Brasil que é exposto pela voz do pai. E em vez de tentar editar o discurso, toma a acertada decisão de transcrever as conversas que gravou com ele. São trechos que soam como relíquias e que, por isso, optei por manter preservados. A linguagem dos pais nunca deixa o corpo dos filhos:
Tornar-se adulto é aproximar-se e afastar-se daquele dialeto familiar, da língua viva da infância. Isso não é tarefa simples. Executamos o demorado labor de eleger palavras, sermos escolhidos por outras, dispensarmos muitas, nos revoltarmos contra termos e usos, construirmos um arquivo pessoal e, com o tempo, produzirmos um relato terceiro, vacilante, entrecortado, como um coral sempre fora do tom, em que graves e agudos, palavras novas e velhas não cessam de produzir uma curiosa dissonância.
Só podemos falar nossa própria língua quando acertamos as contas com a língua dos nossos pais.
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Enquanto terminava de escrever esta edição, liguei para minha mãe e pedi por histórias de meu avô. Ela contou que Sebastião viajava pelo país em busca de sacas de arroz que depois vendia na cidade onde morava em Minas Gerais. Chegava a ficar um mês fora de casa. Quando voltava, estendia a lona do caminhão pela rua e os filhos brincavam de dobrar o longo tecido. Sempre trazia presentes. Minha mãe lembra de um pacote de uvas, fruta rara na região onde viviam, e também de maiôs para vó Laura e a tia Lenita — um incentivo ousado vindo de um homem daquele lugar e daquela época. Assim que as coisas apertaram em Minas, a família veio para São Paulo e, graças a experiência na estrada, meu avô conseguiu trabalho como motorista de ônibus, profissão que exerceu até se aposentar.
Também consegui matar uma dúvida: ele esteve, sim, em Brasília. Tirou foto e tudo. Devo receber em breve <3
Ainda é sucesso se for algo impossível de exibir para os outros?
Fotografias e o envelhecimento
O que há num nome — as fronteiras que desenhamos com letras
A dimensão moral da sorte
Apenas a matéria vida era tão fina
Perdida na personagem
Este mix de Frances Ha e La la land <3
Por uma escrita menos criativa
O processo seletivo do mestrado — vídeo que enviei primeiro para os apoiadores e que agora está liberado ;) Eles também receberam listas de leituras e aulas que ajudaram a me preparar para as provas
Livros que estou de olho:
- Uma prosa apaixonada, de Virginia Woolf
- Uma mulher singular, de Vivian Gornick
Queria ser grande, mas desisti também é livro \o/
E se quiser me acompanhar em tempo nada real: @babibomangelo
“Só podemos falar nossa própria língua quando acertamos as contas com a língua dos nossos pais.” nossa, isso bateu, hein? já entrou pra minha lista de leitura!
amei a edição e obrigada pela indicação nos links da semana ❤️
uau