Esta é uma edição especial do inventário de inspirações, que eu envio uma vez por mês para os assinantes pagos desta newsletter. Hoje, ela vai assim, aberta a todos, para fazer um convite importante: neste sábado, eu e um super grupo de escritores faremos um aulão de escrita para arrecadar dinheiro para o Rio Grande do Sul. A iniciativa e organização é da querida e você pode fazer a inscrição aqui e contribuir com o valor que melhor couber no seu bolso. Sabe quem vai participar? Gente como a , , , e . Minha apresentação está agendada mais pro fim da tarde e a ideia é falar da escolha de temas, formatos e de como me organizo para escrever esta newsletter toda semana há quase 8 anos.
Preparando o que vou dizer, percebi que replico em meus projetos um tanto da dinâmica do trabalho como jornalista-que-cobre-as-notícias-quentes-do-dia. Como assim? Bom, na editoria de Política não tem isso de ficar planejando muito — a gente cobre o que aparece, o que está acontecendo. O presente se sobrepõe a tudo. É assim na newsletter também, numa escala íntima, é claro. Eu não programo temas, não faço banco de pautas. Eu escolho escrever sobre assuntos que estão dominando meus dias. Pode ser um nó interno, uma reflexão a partir de um livro, de um filme ou de uma série. Pode ser uma frase do meu filho que ando guardando como um tesouro. Desse jeito, a newsletter serve como um diário, como uma caixa de memórias, e aí quase tudo serve de material para um texto.
Lydia Davis, uma autora que ando namorando nas últimas semanas, usa muito da própria vida nos contos que escreve, faz da rotina um trampolim para a ficção. São textos breves, de vários formatos, que dizem algo na superfície, mas que se abrem ao exercício de revirar camadas e, assim, revelar coisas novas. Lydia trata do preparo de um jantar, do ato de se desfazer de um tapete, da observação de vacas que pastam ao longe. Um dos contos preferidos até agora é O passeio, que acompanha a caminhada de uma tradutora e um crítico literário por Oxford. A história está em Tipos de perturbação, com tradução de Branca Vianna.
Saindo da ficção, mas continuando no tema do registro da vida por meio da escrita: o episódio de Wiser than me com a Patti Smith caiu como um abraço nestes dias tão difíceis. Ela conta como deu muitas voltas antes de terminar Só garotos, de como os anos que passou cuidando dos filhos foram desmerecidos por parte da crítica musical e dos muitos amuletos que ela carrega junto ao corpo. Patti Smith se define de um jeito que me agrada muito: I’m a worker — uma trabalhadora. Diante de todos os títulos possíveis, é esse que Patti prefere. Uma das justificativas é que o termo dá conta de abranger as muitas facetas que ela assume — e todas demandam trabalho, esforço.
Qual título melhor se encaixa na combinação de ofícios a que me dedico? Eles têm nomes diferentes — jornalismo, escrita, pesquisa —, mas navegam no mesmo mar, mexem com palavras. As minhas e a dos outros. Um trabalho de ir e vir, de esticar, de encurtar, de aprofundar, de simplificar, de desvendar. De retrabalhar. Ou de editar. Edição. Editora. Título que me acompanha há anos, mas que sempre perde protagonismo diante das outras funções que executo e são mais facilmente compreendidas. Há quem pense que editores não escrevem nada, apenas apontam ou criticam. Podam. Tem disso, é claro, mas é só uma parte, pequena. Edição é criação. É um exercício autoral e delicado. E sempre coletivo — quando bem feito.
Talvez eu tenha indicado esse ensaio vezes demais, mas aqui está, batendo na sua porta novamente: Editar é escrever, de Mónica Nepote e tradução de Clarissa Xavier. A apresentação que o recomenda diz que “pensa a tarefa da edição de textos como um exercício político, de reescrita do tempo e das técnicas. É preciso que haja colaboradores para que haja edição, e o tempo do texto resiste, ou pelo menos insiste em desviar, do tempo de produção do capital – é por isso que editar implica voltar a decidir sobre como trabalhar junto e os ritmos da partilha desse trabalho.”. Te convenci a ler?
Alejandro Zambra veio a São Paulo esta semana e entre muitas coisas bacanas falou com muito carinho da figura do editor. É, inclusive, o tema do ensaio que publicou na última edição da Serrote. Recomendo demais, demais mesmo.
Termino este inventário às 02:46 da manhã, depois de um longo dia na redação, editando notícias sobre a tragédia do Rio Grande do Sul. Neste momento, são 107 mortos e aqui está o nome de muitos deles. Não deixe de ajudar, não deixe de se indignar.
Queria ser grande, mas desisti também é livro \o/
E se quiser me acompanhar em tempo nada real: @babibomangelo
Quando li o Just Kids, lá atrás, uma coisa que me pegou demais foi a questão da Patti Smith com a ética do trabalho. De ela se ver, e se posicionar, como artista e como trabalhadora. Acho muito inspirador.
ps: Lydia Davis <3
Muito bom. Fiquei curiosa para ler tudo que indicou e pretendo participar da aula de sábado. Estou cá em cima no nordeste, mas acompanhando de perto a dificuldade de amigos queridos no Sul. Adorei a auto definição da Patti Smith, não conhecia e me identifiquei demais. Como professora de yoga, escritora nas horas vagas, sempre faço questão de tirar o pó místico e falar de trabalho. Importante. Obrigada pelas palavras de hoje