Escrevo para não esquecer deste dia. Sábado, 26 de novembro de 2022. O dia em que estive na presença de Annie Ernaux durante pouco mais de uma hora. Uma aura palpável, que afetou a Flip inteira.
A fila se formou antes do habitual, cadeiras extras foram trazidas para a tenda. O Nobel contribuiu para o frenesi, com certeza, mas tinha um elemento extra. Um desejo de absorver a energia dela. A coragem. A habilidade de trançar a vida íntima com a vida de tantas de nós. Havia ali a vontade de prolongar o impacto que seus livros deixam. Um apetite saciado com sucesso.
Annie Ernaux começou explicando a mistura de sensações que a tomou assim que soube da honraria. “Fui projetada, pequena e frágil, por esse prêmio que é esmagador”. Teve medo de que as obrigações que vêm junto com o Nobel pudessem roubar sua velhice. Um período que não pode ser lembrado, só vivido. “A velhice é a quinta estação da vida. Não é o inverno, é outra estação, outra maneira de considerar o tempo”. E aí foi taxativa: vou assumir o peso desse prêmio, mas dentro de alguns limites.
Ernaux também falou sobre as imagens, de como escreve a partir delas. Citou uma foto dos pais e de como, para além da moda ou do ambiente, notou ali o corpo de trabalho, os sinais do grupo social a que pertenciam. Escreveu a partir disso, do cotidiano, da vida comezinha. Porque é nesse âmbito que a tensão entre classes se mostra com força. Do modo como falamos ou mesmo sonhamos.
Annie Ernaux nasceu em meio a operários e na juventude ascendeu à camada intelectual. É um dos grandes temas de O lugar. A necessidade de encarar o distanciamento de quem foi, de onde veio. Alguém da plateia perguntou se a vergonha deixava de existir algum dia. Ela respondeu que a experiência compartilhada vira um fato social. “A vergonha escrita já não é a vergonha vivida”.
Sobre aborto, ressaltou a angústia que ronda as mulheres que não tem poder de escolha. A luta pela liberação do aborto é sempre uma busca por autonomia. Pelo direito à liberdade que os homens tanto conhecem. Escreveu O acontecimento para recuperar o terror que viveu quando era estudante de Letras. E aqui voltou à questão de classe: disse que narrou a experiência do aborto clandestino pelos olhos de uma jovem vinda de uma pequena cidade, onde falavam em dialeto, onde não pertenciam à cultura dominante. Falou do choque de estar em mundo aberto e ter que lidar com a impossibilidade de controlar o próprio corpo.
Ouvir Ernaux foi importante demais.
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Para quem se interessa por transições de classe, deixo aqui um artigo bem bacana: Annie Ernaux, uma escritora trânsfuga de classe.
E sobre aborto, lembrei bastante do trecho de Exciting Times, de Naiose Dolan, no qual a protagonista conta que junta dinheiro desde muito jovem para um eventual aborto - tem pavor da falta de autonomia e sabe que só pode depender de si mesma.
Ainda neste domingo, mando minhas impressões da mesa com Tamara Klink e Nastassjia Martin ;)
Assisti pelo telão e a sensação era ver a Flip inteira parada para ouvi-la. Emocionante!