Esta é a primeira edição extra da newsletter que, a partir de julho, chegará uma vez por mês exclusivamente para assinantes. Os envios semanais seguirão gratuitos, como acontece há seis anos <3
E, uau, que caminho até aqui. 2022 tem sido o ano de olhar para a escrita com mais seriedade, de entender e assumir este espaço que já é meu há tanto tempo. Foi num podcast da Aline Valek que ouvi sobre a importância de se autorizar a fazer os próprios rolês - e aqui estou: me autorizando a ganhar uma grana pelo trabalho que faço com tanto gosto e dedicação. Estou me autorizando também a experimentar outros formatos: áudios, entrevistas, análises imensas, listas, bulas de remédios, receitas, FAQ para quem quer voltar a estudar. O que der vontade e o que parecer bacana para iniciar uma conversa com vocês. Por isso, aceito sugestões carinhosas para ampliarmos este espaço. Querem dicas de escrita, de como divulgar os textos por aí? Ou de como voltar a estudar — com cursos livres ou mestrado? Uma peregrinação por livrarias independentes de SP? Um plano para dominar o mundo?
Aparecerei todo mês com um breve diário de leitura. Assim, em texto e também em áudio — com a minha voz um tanto anasalada, sem maiores treinos de fono, perfeitamente falha. Nesta primeira edição: diários como forma de experimentação literária.
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Os últimos meses foram de mergulho num gênero que até então não me interessava: os diários de escritores. Pensava que era material apenas para fãs aficionados. Que nas páginas só encontraria os mais banais dos relatos — listas de afazeres, registros de encontros. Mas bastou deixar as ideias preconcebidas de lado para lembrar do quanto eu gosto do ordinário e de como ele pode ser gérmen de reflexões deliciosas. Conectadas a determinados fatos do dia ou fruto de exercícios estético-literários. Virginia Woolf, por exemplo, usava os diários para estudos de formatos e de temas que depois seriam incluídos em seus romances. Trago aqui um trecho da tese de doutorado de Ana Carolina Mesquita, tradutora das edições mais recentes dos diários de Virginia:
O diário serviu assim, entre outras coisas, como um equivalente literário ao que nas artes plásticas convencionou-se chamar sketchbook - um caderno em que os artistas fazem croquis e registram desenhos e colagens de suas ideias e inspirações. A própria Woolf com o tempo vai adquirindo ciência desse fato, como revelam as seguintes passagens de 1924: "Acaba de me ocorrer que neste livro eu pratico a escrita; treino minhas escalas; sim, & me dedico a criar certos efeitos. Ouso dizer que aqui pratiquei [O quarto de] Jacob - & Mrs D.[alloway], e aqui devo inventar meu próximo livro, pois cá escrevo meramente em espírito [...]
Quem também usou os diários dessa forma foi Ricardo Piglia. O escritor argentino preencheu 327 cadernos, que depois foram editados, por ele mesmo, em três volumes. Em meio a perrengues financeiros e desilusões amorosas, há rascunhos de contos, ensaios e ferrenhas críticas a tendências literárias da época. O que chamou minha atenção - e me deixou um tanto confusa no começo - foram os trechos narrados por um outro que não Piglia. São os diários de Emilio Renzi que temos em mãos. Um alter ego, um duplo. Uma ferramenta para burlar a difícil tarefa de escrever sobre si mesmo, como ele — Piglia/Emilio — conta numa das entradas finais do livro, que depois veio a ser um prefácio para uma antologia de autobiografias:
Como nos ensina a linguística, de todos os signos da linguagem, o Eu é o mais difícil de controlar, o último que a criança adquire e o primeiro que o afásico perde. A meio caminho entre ambos, o escritor adquiriu o hábito de falar de si mesmo como se falasse de outro.
Ainda assim, ele tenta em certos livros esquecer essa máscara, então uma subjetividade concreta mostra o rosto, é assumida.
Exorcismo, narcisismo; numa autobiografia, o Eu é todo o espetáculo. Nada consegue interromper essa zona sagrada da subjetividade: alguém contando sua própria vida, objeto e sujeito da narração, único narrador e único protagonista, o Eu parece ser também a única testemunha.
Entretanto, pelo simples fato de escrever, o autor prova que não fala apenas para si mesmo; se assim fosse, bastaria uma espécie de nomenclatura espontânea de seus sentimentos, posto que a linguagem é imediatamente seu próprio nome. Obrigado a traduzir sua vida em linguagem, a escolher as palavras, o que está em jogo já não é a experiência vivida, e sim a comunicação dessa experiência, e a lógica que estrutura os fatos não é a da sinceridade, e sim a da linguagem.
Anos de formação - os diários de Emilio Renzi, de Ricardo Piglia
Deixo aqui uma listinha com outros diários que tenho muita vontade de ler:
- Sylvia Plath
- Susan Sontag
- Franz Kafka
- Quarto de despejo, de Carolina Maria de Jesus
Alguns livros acabam, mas não nos deixam. Cravam fundo a história, os personagens. Movem sentimentos desconhecidos e desorientam as perspectivas. Tornam-se parte da formação da nossa identidade. Em busca dessa biblioteca afetiva, chamarei pessoas bacanérrimas para contar quais livros iniciaram uma revolução íntima. E, né, como não começar com a musa Aline Valek? Escritora, podcaster, ilustradora. Sou profundamente inspirada por tudo que ela faz. E basta ler as indicações abaixo para você se apaixonar também, sério.
O guia do mochileiro das galáxias, de Douglas Adams
“Essa série de livros foi a minha porta de entrada para drogas mais pesadas da ficção científica. O humor de Douglas Adams é o verdadeiro veículo que conduz essa aventura pelas galáxias em busca do sentido da vida, do universo e de tudo o mais — e olhar o universo pelas lentes do absurdo, do ridículo e do exagero me parecem a única forma possível de encarar essa existência. Até hoje busco temperar as coisas que escrevo com essa sensação que a leitura dos livros do Douglas Adams me causou. ‘Não entre em pânico’ é um dos melhores conselhos que um livro já me ofereceu e Douglas Adams me marcou tanto que cheguei a tatuar um trecho de um dos seus livros em mim.”
Por escrito, de Elvira Vigna
“Ler esse livro foi como escancarar uma janela para uma nova dimensão dentro da literatura. A escrita da Elvira me mostrou como é possível uma história se apresentar muito próxima da estrutura da mente, cheia de idas e vindas, imprecisões, lacunas que as especulações da narradora tentam dar conta de preencher, a expansão do tempo em detalhes que são banais para a maioria das pessoas, menos para as narradoras de observação afiada que ela constrói. Adoro como nos livros dela a reviravolta que explode cabeças não está em artifícios na estrutura da trama, mas no desdobramento dos personagens. É uma jornada de profundidade, sempre tem uma morte estranha envolvida e mesmo assim não falta humor e beleza na forma inteligente que a história é apresentada.”
Os segredos da ficção, de Raimundo Carrero
“Esse foi um livro que li muito antes de eu pensar em ser escritora e foi uma das leituras que mais me ofereceu caminhos para eu ousar começar a escrever ficção. Foi a partir dele que tive contato com muitos conceitos e ferramentas que usei e aperfeiçoei no meu processo de escrever romances. Não cheguei a estudar romance ou teoria literária de maneira formal, dentro da academia, mas considero que este livro foi como um orientador, me apontando caminhos e referências para que eu descobrisse meu próprio caminho na escrita.”
Queria ser grande, mas desisti também é livro \o/
E se quiser me acompanhar em tempo nada real: @babibomangelo
Babi, amei esse formato! Inscrita. :)
E amo diários, sou super curiosa sobre como é o cotidiano das pessoas que admiro; como se encaixa as pequenas coisas da vida para se chegar na arte final, sabe?
Assinado! :D
Acho essa news sensacional e você tem me inspirado muito, Bárbara!
Gosto muito de ler sobre os desafios que temos em nos autorizar enquanto escritoras, adoraria ler mais sobre isso por aqui também! Beijos e parabéns pelo projeto!