#255 Queria ser grande, mas desisti
quando temas difíceis se apresentam e faltam palavras para explicar o horror
Eu optei por criar o Joca com muita conversa e explicações. Tudo legal, tudo bacana, mas não sem desafios. Vez ou outra, temas difíceis se apresentam e me faltam palavras para ajudá-lo a desvendar momentos terríveis da história. Falar de morte morrida eu tiro de letra, agora morte matada, de propósito, de centenas, de crianças… Não. Quando chega a hora, engulo a seco, busco por metáforas e me atenho às perguntas imediatas. Não fujo porque sei que o conhecimento do horror é também parte da experiência da vida e talvez seja menos doloroso aprender junto com alguém que se esforça para tornar o processo mais gentil. E sempre sincero. Sem contornar verdades sofridas como as que encontramos no Museu da Memória e dos Direitos Humanos em Santiago. Uma construção retangular enorme, de um verde meio apagado, preenchida pela lembrança dos anos da ditadura chilena, que prendeu, torturou, assassinou ou desapareceu com mais de 40 mil pessoas, segundo os números oficiais — grupos de vítimas dão conta de um número maior: 100 mil. CEM MIL. Lavras, no sul de Minas Gerais, vizinha à terra natal da minha mãe, tem 104 mil habitantes. Uma cidade inteira.
Os dados mais recentes dizem que 153 menores de idade foram executados pela repressão militar chilena ou assassinados em protestos. 40 seguem desaparecidos. Como explicar isso? Como entender o que era ser criança numa época assim? O museu deu um jeito com desenhos. Em uma página, rabiscos de arco-íris e pessoas com pernas e braços de palitos. Na outra, tanques, a palavra medo, listas do que já não era mais possível fazer: encontros em grupo, andar na rua à noite. Muito mais não do que sim. Tentaram até mudar os mapas das apostilas à força. Tem um trecho em A casa dos espíritos, de Isabel Allende, com exemplos dessas empreitadas violentas e idiotas:
De uma só penada, os militares mudaram a história, apagando os episódios, as ideologias e as personagens que o regime desaprovava. Adequaram os mapas, porque não havia nenhuma razão para pôr o Norte em cima, tão longe da pátria benemérita, quando era possível pôr embaixo, onde ficava mais favorecido, e, de passagem, pintaram com azul da prússia vastas margens de águas territoriais até os limites da Ásia e da África, e se apoderaram de terras longínquas nos livros de geografia, retraçando as fronteiras impunemente, até que os países irmãos perderam a paciência, gritaram nas Nações Unidas e ameaçaram com tanques de guerra e aviões de caça. A censura, que a princípio só atingiu os meios de comunicação, logo se estendeu aos textos escolares, às letras das canções, aos roteiros dos filmes e às conversas privadas. Havia palavras proibidas por decreto militar, como "companheiro", e outras que não se diziam por precaução, apesar de nenhum decreto tê-las eliminado do dicionário, como liberdade, justiça e sindicato.
— na tradução de Carlos Martins Pereira
Palavras proibidas. Olhando para os cadernos de desenho, Joca ensaia uma conexão com Voldemort — um nome não dito por medo e depois usado para capturar a resistência. Seguimos assim, com explicações do mundo real misturadas a campos de ficção que ele conhece. E eu, ao lado, caminho emocionada. A ditadura militar brasileira foi tema do documentário que fiz com grandes amigas no último ano da faculdade de jornalismo. Traçamos um panorama dos filmes que retratam de alguma forma o período. Cenas de muita dor e indignação. Mergulhar nos atos de repressão se mostrou tão indigesto que passei um bom tempo depois da formatura sem sequer conseguir olhar para qualquer coisa sobre o assunto. Mas é preciso lembrar e contar para ele que nosso país também viu dias terríveis. O pior passou, ainda bem, mas é o tipo de maldade que está sempre à espreita, como esses vilões que insistem em ganhar uma vida extra.
Além de muito bem pensado, o Museu da Memória e dos Direitos Humanos, em Santiago, é gratuito <3 Para quem é de São Paulo ou está com viagem marcada, recomendo demais a visita ao Memorial da Resistência
A primeira edição do Jabuti Acadêmico premiou dois livros que falam da ditadura brasileira:
A torre: o cotidiano de mulheres encarceradas pela ditadura, de Luiza Villaméa
As comissões da verdade e os arquivos da ditadura militar brasileira, de Mônica Tenaglia
Antes que o segundo semestre avance muito, liberei o acesso ao vídeo em que faço um balanço do mestrado e das leituras da primeira parte do ano AND de como tenho catalogado meus livros <3
Saiu meu artigo sobre Pessoas Normais \o/ Trabalhei as famílias dos protagonistas como espaços de adoecimento ou de emancipação
Quem te apoia? — e aqui deixo um agradecimento aos leitores que financiam a newsletter <3
Com quem você cria?
O engano da teoria musical que existe na escrita
A amiga imaginária dos meus pais
Análise de mascote
Quatro filmes andantes — um dos meus gêneros favoritos <3
Esta cena me mata toda vez
Um curso que promete ser muito bacana: mãe, mar, margem — os litorais da escrita em Elena Ferrante, Annie Ernaux e Marguerite Duras
Eu já estou pronta para o curso da Carol Bensimon, uma das escritoras que mais admiro
Leituras do momento:
Headshot, de Rita Bullwinkel — comecei na viagem e estou AMANDO (é um dos finalistas do Booker Prize)
Baumgartner, de Paul Auster e tradução de Jorio Dauster
Kairos, de Jenny Erpenbeck
Queria ser grande, mas desisti também é livro \o/
E se quiser me acompanhar em tempo nada real: @babibomangelo
Acho linda a forma como você mostra o mundo pro Joca, sem esconder as partes feias e sem causar desesperança! <3
Vou usar esse texto no consultório, 📖