Pintura de Hélène Delmaire
Esbarrei num ensaio sobre a construção do conceito de privacidade em Mrs. Dalloway, de Virginia Woolf. Devorei o texto na hora em que encontrei e tenho voltado a ele com frequência nas últimas semanas. O que me cativou foi a ideia de manter certos sentimentos protegidos até de nós mesmos. Não por medo de enfrentá-los, mas, sim, por um receio de tirar o brilho, o ar quase sagrado de acontecimentos preciosos e alegres. Como se ao tentar racionalizar as sensações, algo essencial se perdesse pelo caminho.
O ensaio de Joshua Rothman está em inglês, mas traduzi um trecho que resume bem:
Woolf muitas vezes concebe a vida desta forma: como um presente que você recebeu, que você deve guardar e valorizar, mas nunca desembrulhar. Abrir dissiparia a atmosfera, arruinaria o esplendor — e o esplendor da vida é o que faz valer a pena viver. É difícil dizer o que significa agarrar-se à vida sem olhar para ela; esse é um dos quebra-cabeças de seus livros. Mas tem algo a ver com a preservação do mistério da vida; em deixar certas coisas não descritas, não especificadas e desconhecidas; com o sabor de certas emoções, como curiosidade, surpresa, desejo e antecipação. Depende de um intenso sentido da preciosidade e fragilidade da vida e de uma noção semelhante à de Heisenberg de que, quando se trata de nossas intuições mais abstratas e espirituais, olhar muito de perto muda o que sentimos. Tem a ver, em outras palavras, com uma espécie de privacidade interior, por meio da qual você se protege não apenas do olhar curioso dos outros, mas também do seu.
Um dos meus ensaios favoritos de Virginia Woolf é Um esboço do passado. É uma espécie de autobiografia e logo no comecinho a autora fala dos momentos de “não-ser”:
Por que esqueci de tantas coisas que, é algo a se pensar, devem ter sido mais memoráveis do que aquilo que de fato recordo? Por que recordar do zumbido das abelhas no pomar a caminho da praia e esquecer completamente que papai me atirava nua no mar? [….] Muitas vezes, enquanto eu escrevia um dos meus assim chamados romances, esse mesmo problema me desconcertou: ou seja, como descrever aquilo que na minha taquigrafia particular chamo de “não ser". Cada dia inclui muito mais momentos de não ser do que de ser — Um esboço do passado, Virginia Woolf (p. 23-24, na edição da Editora Nós)
Um acidente, Rebecca Solnit e o azul da distância — sempre recomendo os textos da
Sobre o prazer dos hábitos e sobre como a gente perde o ritmo também nos hábitos <3
Lançamentos que estou de olho:
- Escrever é muito perigoso, de Olga Tokarczuk
- Peitos e ovos, de Mieko Kawakami
Tô velha demais para isso
Dia 24 de março tem clube do livro de Belo mundo, onde você está com a minha participação \o/ É de graça e no canal da ABEI, a Associação brasileira de estudos irlandeses:
E aproveito para deixar aqui o link para os últimos vídeos que publiquei:
- O primeiro ano do mestrado: meu ano de cansaço e piração
- Uma jornalista num mestrado em Letras
- Uma obsessão chamada Sally Rooney
Os vídeos sempre chegam primeiro para quem apoia financeiramente a newsletter <3
Queria ser grande, mas desisti também é livro \o/
E se quiser me acompanhar em tempo nada real: @babibomangelo
Confesso que ler essa newsletter me fez comprar o livro de ensaios. Estou até agora refletindo sobre essa perspectiva de privacidade dos sentimentos. Parabéns pelo texto!