Sinto-me oprimida, desconfortável, na escrita bem calibrada, tranquila e aquiescente que me fez pensar que eu sabia escrever. […] Então procuro outra escrita, impetuosa, mas não tem jeito, ela raramente dispara. Aparece, sei lá, nas primeiras linhas, mas não consigo retê-la, ela desaparece. Ou irrompe depois de páginas e mais páginas e avança insolente, sem se cansar, sem se deter, sem dar atenção sequer à pontuação, valendo-se apenas do próprio ímpeto. Depois, de repente, me abandona.
— As margens e o ditado, de Elena Ferrante
Este trecho do livro de ensaios As margens e o ditado, de Elena Ferrante, fala da busca por uma escrita selvagem. Que não tem o objetivo de ser organizada ou totalmente compreensível. Mas, sim, fiel às sensações que perturbam o corpo. A razão. Essa escrita gera frases que soam viscerais, que soam como a gente. Que não se parecem com uma literatura protocolar. O único porém é que esse modo de operar nem sempre se mostra disponível. Vem e vai sem controle, sem que se possa entender o que o despertou. Tem vezes que brota da raiva. Da angústia. Mas também surpreende em momentos de marasmo. Dura muito e dura nada. É arredio, difícil de replicar sob demanda.
Em Afetos ferozes, Vivian Gornick também descreve a inspiração fugitiva. O termo que ela usa, e me agrada muito, é espaço interno — uma espécie de buraco criativo que se expande ou se contrai:
Aquele espaço. Ele começa no meio da minha testa e acaba no meio do meu baixo-ventre. Varia, sendo da largura do meu corpo ou estreito como uma fenda na parede de uma fortaleza. Nos dias em que o pensamento flui solto, ou, melhor ainda, quando adquire clareza graças ao esforço, o espaço se expande gloriosamente. Nos dias em que a ansiedade e a autocomiseração o atravancam, encolhe - e como encolhe depressa! Quando o espaço é amplo e eu o ocupo por inteiro, sinto o sabor do ar, sinto a luz. Respiro regular e lentamente. Estou em paz e excitada, fora do alcance de influências ou ameaças. Nada pode me tocar. Estou a salvo. Livre. Penso. Quando perco a batalha de pensar, os contornos se estreitam, o ar fica poluído, a luz obscurece. Tudo é vapor e nevoeiro, e tenho dificuldade para respirar.
— Afetos ferozes, de Vivian Gornick
Uma pena que Vivian Gornick não passe a receita exata de como manter o espaço interno expandido por tempo suficiente para escrever um livro de memórias tão potente como o dela. Mas há pistas. Um tanto de coragem, de descanso. De leituras, de conversas. De tempo e de liberdade. E também de disciplina. Palavra que muita gente não gosta, mas sem a qual a escrita não se manifesta.
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E se quiser me acompanhar em tempo nada real: @babibomangelo
eu andava empapuçada de textos sobre escrever circulando pelas newsletters, mas esse aqui me mostrou que não era o tema que cansava, mas o fato de que poucos falam dessas verdades verdadeiras. e por isso, para mim, vc é grande.
obrigada por mais essa edição linda e tão bem escrita :)
(não tava esperando ver link pra Segredos ali! entao, obrigada mais uma vez ❤️)
Que texto lindo! E muito obrigada pelo linkzinho <3
Escrever é uma das atividades mais simples e complexas ao mesmo tempo, eita assunto para render. Por isso mesmo, me fascinam e me assustam muito, inclusive, as possibilidades da inteligência artificial - até que ponto escrever pode ser independente dos humanos? Máquinas conseguirão ser viscerais? Em quanto tempo estaremos em um mundo dominado (ou não) por esse tipo de produção? Beijos <3