Ilustração de Ing Lee
Entro em toda leitura contaminada pelo momento. Com as reflexões da semana na cabeça, com os temas pelos quais ando obcecada. E isso muda a experiência por completo.
Comecei a ler Aos prantos no mercado, de Michelle Zauner, pensando que o ponto mais forte para mim seria o processo de luto desta filha que perdeu a mãe para o câncer. É uma história que me toca — minha mãe foi diagnosticada com câncer de mama pela segunda vez em 2020 e me vi desnorteada com a possibilidade da morte. No livro, Zauner fala dessa dor e recupera com bastante sinceridade as lembranças da mãe, sempre conectadas de alguma forma à comida — aos pratos hiper condimentados da cozinha sino-coreana. É lindo, às vezes bagunçado. Real.
No entanto, até agora, a metade do livro, tenho sido atraída mais pela mãe do que pela filha. Pela forma como ela abordava a maternidade. Fazia críticas constantes à aparência da filha e era dura com as mudanças de personalidade típicas da adolescência. Era capaz de dizer coisas horríveis, mas também de despejar um afeto sufocante. Não concordava com as escolhas de Michelle, com a mudança para o outro lado dos Estados Unidos para tentar a vida como cantora, mas se fazia presente por meio de carregamentos de comidas, de pequenas gentilezas, como amaciar por dias uma bota de couro antes de enviar para a filha:
As botas de caubói chegaram em um desses pacotes, depois de meus pais terem passado férias no México. Quando calcei, descobri que já tinham sido amaciadas. Minha mãe tinha usado as botas dentro de casa durante uma semana, por uma hora todos os dias, amaciando as partes duras usando dois pares de meia, moldando a sola lisa com a planta do pé dela, amolecendo a rigidez, fazendo com que o couro duro cedesse para me poupar de qualquer desconforto.
Aos prantos no mercado, Michelle Zauner
É um trecho que contém tanto. A mãe amolecendo a rigidez do couro, mas também amaciando a si mesma, a dureza na relação com a filha. A tentativa de poupá-la de qualquer desconforto. Tá aí, eu me identifico demais com isso: a vontade imensa de preservar meu filho de angústias. Como se fosse possível, como se não fizesse mais mal do que bem. Eu me sinto na obrigação de escutar a tudo pacientemente, a acolher o tempo todo, a contar exemplos dos meus sofrimentos. Bacana, sensível, mas venho percebendo que deixo pouco espaço para que ele sinta, para que ele se frustre. Quero logo aplacar com um “tá tudo bem, é assim mesmo, a mamãe também já passou por isso”. Me mostro como ponto de apoio, mas interrompo o fluxo das emoções.
Tenho feito um esforço imenso para interferir menos — e me permitir falhar mais. Não estar sempre a postos para sanar toda e qualquer questão. Que difícil encontrar o equilíbrio entre mãe presente, carinhosa, mas não absoluta. Miro na mãe suficientemente boa de Winnicott e engulo seguranças que têm muito mais a ver comigo do que com o Joaquim. E o resultado disso só vou saber daqui umas boas décadas. Ou nem isso.
A
escreveu uma resenha bem bacana de Aos prantos no mercadoAnnie Ernaux transforma memória em arte
O que eu sinto que devo escrever X o que eu de fato gosto de ler
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, da Carol BensimonComo descrevem as mulheres na política
Mulher feliz é ato político
Duas coisas que eu assisti e gostei muito:
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E por último: semana que vem viajo para acompanhar PELA PRIMEIRA VEZ a Flip \o/ Estou feliz demais — consegui ingressos para as mesas que mais queria: Annie Ernaux, Nastassja Martin e Benjamín Labatut. Chego na sexta, dia 25, e pretendo escrever minhas impressões em ~tempo real. Quem apoia financeiramente a newsletter vai receber os textos antecipadamente.
Queria ser grande, mas desisti também é livro \o/
E se quiser me acompanhar em tempo nada real: @babibomangelo
Obrigada pela partilha da leitura, Bani. Eu amei o livro e amei te ler sobre ele.
Ah Babi! Mais um texto incrível, estou doida pra ler o livro Aos Prantos no Mercado, adorei a texto da Sarah Germano sobre ele e agora este seu, mais um livrinho furando fila! Hahahaha
Adorei a News da Nathalia Levy, me identifiquei tanto com o texto!