Instruções para enxergar
Passe meses, talvez anos, grudada à tela da TV. Com os olhos tão próximos quanto for necessário para perceber que as imagens são formadas por milhares de pequenos quadrados de luz. Dê passos para trás e note com quantos deles você deixa de ver o que é transmitido. Se for menos de três, avise alguém. Qualquer um: irmã, mãe, padrasto, pai. É provável que não acreditem em você. Insista. Caso demore a convencê-los, sente-se nas primeiras carteiras da sala de aula e peça os cadernos dos amigos para copiar a matéria que está na lousa. O pedido deve ser feito com educação, mas em alto volume. É de extrema importância que a professora ouça e, então, alerte as pessoas adequadas. Estudos indicam que recados escritos de maneira formal na agenda escolar desencadeiam uma investigação familiar. Agora, aguarde uma visita ao consultório. E se prepare para o choque — dos outros, é claro. É possível que você não veja nenhuma letra. Z, E ou A. Apenas uma massa branca com borrões pretos. É, três graus de miopia exigem óculos imediatos. De lentes grossas e pesadas, que só caberão em armações de aspecto desagradável para uma criança de onze anos. Aceite. Espere uma hora até que fiquem prontos e coloque no rosto com calma. A definição e clareza do mundo podem ser esmagadoras. Olhe lentamente para suas mãos, para as placas de trânsito, para os outdoors que você nunca tinha notado na Marginal Pinheiros. São todos da Sadia. Presuntos e salsichas. Conte para sua mãe que até ontem aqueles cartazes eram invisíveis, se misturavam ao movimento cinza e disforme a que se resumia os passeios de carro. Ouça o choro dela. Enjoos e dores de cabeça são comuns nos primeiros dias.
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Os três graus de miopia agora são nove. E esse jogo entre enxergar e não enxergar faz tão parte de mim que é uma das primeiras coisas que conto quando preciso me apresentar. Tal como Jonathan em Cenas de um casamento usa o fato de ser asmático como elemento fundamental de autodefinição. O medo de perder o ar e a impossibilidade de observar e divisar o mundo são angústias constantes — e temas que, quando aparecem num texto literário, me pegam de jeito.
Em Estação Onze, de Emily St. John Mandel, tem um trecho sobre um homem que perdeu seus óculos há muitos anos e, como ele vive num mundo pós-apocalíptico, nunca pôde fazer um novo par:
O sétimo violão era uma pessoa nervosa porque estava quase cego. Antigamente, conseguia enxergar razoavelmente com a ajuda de seus óculos de lentes muito grossas, porém seis anos antes os perdera e desde então passara a viver numa paisagem desorientadora, resumida a uma única cor dependendo da estação—no verão, em geral verde; no inverno, cinzento e branco, sobretudo—, na qual vultos enevoados oscilavam por um momento e depois sumiam, antes que ele pudesse distinguir quem ou o que era.
A paisagem resumida a uma única cor. Vultos. Névoa. Eu acrescentaria a palavra desconexão. Ou alheamento. Um desassossego que me leva de volta ao antídoto: os óculos. Em O nome da rosa, Guilherme de Baskerville mostra suas lentes ao mestre vidreiro da abadia, que fica encantado, mas temeroso. Seria aquilo “bruxaria, manipulação diabólica”? Guilherme diz: “são parte de meu próprio corpo”.
Stephanie Borges foi cirúrgica nesta thread para pessoas que querem escrever, mas não escrevem
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Lançamentos que estou de olho:
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A vergonha, de Annie Ernaux
Sátántangó, de László Krasznahorkai
A cidade e a casa, de Natalia Ginzburg
Queria ser grande, mas desisti também é livro \o/
E se quiser me acompanhar em tempo nada real: @babibomangelo
li quase sem respirar, lindo!
primeira vez comentando aqui! me identifiquei demais com a história do óculos, cheguei a marejar aqui com tanta delicadeza que foi escrito. queria que lá atrás, alguém pudesse ter falado tudo isso pra mim. sempre me fechei nessa bolha do óculos quando estava na escola porque já de cara aos 9 anos, na primeira vez que botei os óculos em uma sala de aula, as meninas populares da escola decidiram que eu fazia parte do grupo dos losers (na concepção delas, claro). desde então o óculos virou um problema grande pra mim na escola e na maioria das vezes optava por ficar sem enxergar a ficar sem amigos. associei essas duas coisas e por sorte meu grau não aumentou tanto assim com o tempo. hoje eu não vivo sem meus óculos e fico feliz de saber que são parte de mim. aprendi a gostar deles aos poucos e a ter armações de que gosto, que combinem comigo. enfim, só queria agradecer pelo texto tão carinhoso. beju