#185 Queria ser grande, mas desisti
Foto: Edgecombe Art
Neste primeiro semestre do mestrado, escolhi fazer duas disciplinas sobre memória e representação da história na literatura. Esbarram de alguma forma na minha própria pesquisa - Sally Rooney e a identidade da juventude irlandesa depois da crise econômica de 2008 -, mas a verdade verdadeira é que fui levada para as aulas porque sou apaixonada por livros em que a memória se entrelaça com a ficção e fica difícil de entender o que separa uma coisa da outra. É uma tendência literária que vem ganhando força nos últimos anos (oi, autoficção), mas sempre esteve por aí, né?
Na primeira semana de férias, li O acontecimento, de Annie Ernaux, e fiquei, num só tempo, encantada e triste com o relato autobiográfico construído ali. Ernaux conta a luta - quase uma peregrinação - para conseguir abortar aos 23 anos, numa França dos anos 60 onde o aborto ainda era ilegal. Ela pensou por muitos anos em como narrar o que lhe aconteceu e, quando o faz, adentra num exercício extremo para reavivar as memórias autênticas daquele período.
Quero mergulhar mais uma vez nesse período da minha vida, saber o que se encontra ali. Essa exploração vai se inscrever na trama de um relato, o único capaz de recuperar um acontecimento que era apenas tempo dentro e fora de mim. Uma agenda e um diário íntimo mantidos durante esses meses vão me trazer as referências e as provas necessárias ao estabelecimento dos fatos. Vou me esforçar, acima de tudo, para me aprofundar em cada imagem, até que tenha a sensação física de “alcançá-la”, e que surjam algumas palavras sobre as quais eu possa dizer “é isso”. Ouvir de novo cada uma dessas frases, que não se apagaram em mim, cujo sentido na época deve ter sido tão insuportável, ou, inversamente, tão reconfortante, que afundo em desgosto ou doçura ao pensá-las hoje. (trecho retirado da edição publicada pela Fósforo, p.16)
Gosto deste trecho porque traz uma característica fundamental da memória: ela é falha, escapa sempre, trai o desejo de precisão. É necessário um grande esforço para retomar certas sensações, se é que é possível resgatar fielmente qualquer evento passado. E são nessas rachaduras que a ficção se instala. Fragmentos ganham novos complementos, a depender da necessidade emocional da ocasião.
Mas, ainda que tenha esse caráter inconclusivo, transformar lembranças em narrativa tem um efeito libertador - mesmo quando os temas são traumáticos, doloridos. Virginia Woolf, por exemplo, fez de Ao Farol uma ferramenta para interromper o fluxo de pensamentos desencadeado desde os 13 anos com a morte da mãe.
Escrevi o livro muito rapidamente; e, quando terminei, deixei de ficar obcecada com minha mãe. Não ouço mais sua voz; não a vejo. Suponho que fiz por mim mesma o que os psicanalistas fazem por seus pacientes. Expressei uma emoção que sentia por muito tempo e muito profundamente. E, ao expressá-la, expliquei-a e então deixei que descansasse. (trecho retirado do posfácio da edição publicada pela Autêntica, p. 81).
A memória que acalenta também perturba.
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