#162 Queria ser grande, mas desisti
Ilustração: Manshen Lo
Sally Rooney lançou novo romance e eu parei boa parte do que vinha fazendo para devorá-lo. Gosto da escrita dela porque me vejo ali. Nos temas, na linguagem, no formato. Tem as particularidades da juventude irlandesa, é claro, mas a maioria dos assuntos atravessa fronteiras - não à toa faz tamanho sucesso pelo mundo.
As personagens de Rooney são jovens com 20 e tantos ou 30 e poucos. Gente que chegou a vida adulta em meio à crise financeira de 2008 e agora lida com o fato de que todas as promessas de sucesso não vingaram. Imaginávamos um futuro melhor do o que o dos nossos pais, mais oportunidades. E demos de cara com a precarização dos empregos, com cortes em benefícios sociais. E pensamos: a vida é isso? Um eterno trabalhar e pagar contas, com alguns poucos respiros na semana, no mês?
Também tomamos uma rasteira da internet. Aquilo que víamos como fonte infinita de possibilidades e de conexão, passou a ser uma armadilha. Para o ego, para as relações.
Sally Rooney trata de tudo isso novamente em Belo mundo, onde você está e de uma forma que me agradou bastante. O romance alterna trechos na terceira pessoa com cartas escritas pelas personagens principais, as amigas Alice e Eileen. E essas trocas de e-mails são minha parte favorita. Mostram o caldo confuso que virou nossa mente. Estamos preocupados com tanta coisa. Com o debate político deteriorado, o crescimento do autoritarismo, com as mudanças climáticas, com crises humanitárias espalhadas pelo globo, com a desigualdade de gênero. Coisas importantes, sérias. E isso faz com que sintamos culpa de também nos preocuparmos com coisas "banais" como arte, romance, intimidade, sexo.
"[...] no meio de tudo, o mundo estando como está, a humanidade à beira da extinção, aqui estou eu escrevendo mais um e-mail sobre sexo e amizade. Que outras razões temos pra viver?"
Que outras razões temos para viver? Alice, Eileen e seus pares, Felix e Simon, buscam um jeito de estar neste mundo, de estabelecer algum tipo de conexão. E nesta exploração, há um tema que aparece de forma bem diferente neste novo romance em comparação aos outros: a religião. Em Conversas entre amigos e Pessoas Normais há uma evidente quebra dos protagonistas com a tradição católica da Irlanda, vista como ultrapassada. Já em Belo mundo, onde você está, Alice e Simon apresentam um jeito moderno de praticar o cristianismo. Isso assusta alguns, encanta outros.
"[...] fico fascinada e tocada com a “personalidade” de Jesus, de forma bastante sentimental, provavelmente até piegas. Tudo que diz respeito à maneira como ele viveu me comove. Por um lado, sinto por ele uma espécie de atração e intimidade pessoal que é sobretudo reminiscente do sentimento que tenho por certos personagens ficcionais amados— o que faz sentido, tendo- se em conta que eu o encontrei exatamente pelos mesmos meios, isto é, por ter lido sobre ele em livros."
Um toque inesperado para mim, mas que me fez gostar ainda mais do livro. Como qualquer geração, temos a necessidade de derrubar valores daquelas que nos precederam, mas vez ou outra precisamos resgatar e reformar certos pontos — meio à revelia, talvez, mas sempre na tentativa de passar por esta vida da melhor maneira possível.
"Eu estava cansada, era tarde, quase dormia no banco de trás do táxi quando me lembrei de um jeito esquisito que, aonde quer que eu vá, você está comigo, assim como ele, e, enquanto vocês dois viverem, para mim, o mundo será belo."
Uma das minhas entrevistas preferidas da Sally Rooney
Para quem tem interesse na geração millennial, indico o livro Kids these days, de Malcolm Harris. Traz um bom panorama de como chegamos aqui - e não, não é mimi geracional
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