#139 Queria ser grande, mas desisti
Ilustração: Chragi Frei
Sinto falta da intimidade com as ruas. De saber a sequência de cada cruzamento. De andar sem compromisso com horário ou ponto final.
Caminhar pelo bairro era um passatempo da adolescência. Olhava as vitrines, espiava as revistas na banca de jornal. Um quadrante de algumas ruas guardava meu mundo todo - a escola, a casa dos amigos, a vendinha de doces.
Ao entrar na faculdade, esse universo se expandiu. As placas ganharam outros nomes. Passei a andar pela Avenida Paulista. Decorei a ordem das estações de metrô, as paradas do ônibus. O Conjunto Nacional estava à esquerda ou à direita? Aquela antena lá longe é a da Gazeta ou de alguma rádio qualquer? Distâncias enormes entre uma coisa e outra. Foi ali que comecei a me sentir adulta, no meio de tanta gente sem tempo para aproveitar o caminhar.
Em pouco meses, eu também estava sem tempo. A soma de trabalho e estudo me trouxe um carro. Jeito mais confortável e rápido de dar conta de tudo, mas que me levou para longe das ruas. Passava dias sem andar mais do que dois quarteirões, entre o estacionamento e o meu destino.
Mais uns anos e vieram também as mudanças de bairro. Uma geografia nova sem tempo para explorar. Era quase uma estrangeira pelas ruas. Não sabia a duração de cada semáforo, se existia algum atalho para chegar ao mercado. Demorei quase um ano para descobrir uma padaria que eu gostasse. Convenci meu coração de que a vida era assim. Mudamos para bairros afastados para conseguir pagar as contas e depois passamos os dias nos deslocando de lá para cá, do trabalho para casa, sem nenhuma conexão para além das paredes do apartamento.
Mas nada como um filho para abalar as ideias.
O nascimento do Joaquim me deixou inquieta. Eu queria andar com ele por aí, mostrar cores, movimento. As jornadas de carro só apresentavam um mundo acelerado e caótico. E eu me sentia presa e sozinha. A ajuda da família ficava a quarenta minutos de distância - uma eternidade numa cidade como São Paulo, que tem a habilidade de, num piscar de farol, dobrar o tempo de qualquer percurso.
Abandonamos o bairro-dormitório e nos instalamos num lugar novo. Com mais espaço por dentro e ao redor. Espaço para andar. Não mais ruas desertas, mal iluminadas e inseguras. Um alô para calçadas planas, com comércio familiar, com gente.
A experiência não é a mesma de quando eu era menina. Não tenho mais aquele tempo disponível, ainda não sei a personalidade de cada quarteirão. Mas toda vez que saio a pé me sinto livre. Sinto que faço parte de uma comunidade, de que vivo numa cidade e não apenas no meu apartamento.
Esse texto estava na minha cabeça há alguns meses, mas tomou forma mesmo depois de assistir a série Faz de conta que é uma cidade - um documentário sobre a afiadíssima escritora e humorista Fran Lebowitz. A direção é de ninguém menos que Martin Scorsese e traz entrevistas sobre a relação de Fran com NYC e toda cena cultural que brotou - e ainda brota - por ali.
Ainda sobre caminhar, gosto muito desse episódio do podcast da Quatro Cinco Um com o Leonardo Fróes contando sobre como a prática vem inspirando escritores desde a Antiguidade
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