#135 Queria ser grande, mas desisti
De tempos em tempos, eu me jogo em alguma obsessão. Um autor, um filme, uma banda. O foco da vez é J.D. Salinger, conhecido especialmente por O apanhador no campo de centeio, que estou relendo depois de quase quinze anos. Um livro celebrado por muitos, mas que não é nem de longe uma unanimidade.
E entendo os motivos do desgosto de alguns, realmente não é uma narrativa que vai agradar a todos, mas vou contar aqui a minha experiência com Salinger. Vai que inspiro alguém a dar uma primeira ou segunda chance, não é mesmo?
O tema central de O apanhador no campo de centeio é algo um tanto universal: um adolescente expulso do colégio, desencantado com mundo, que não entende a dinâmica da vida adulta e que parece estar em guerra contra tudo e todos.
Esse descontentamento crônico e a imaturidade de Holden Caulfield - nosso anti-herói - transbordam para escrita, já que a história é toda narrada em primeira pessoa, e o resultado é um texto cheio de gírias, repetições, ideias difíceis de defender e até irritantes - e é nesse ponto que muitos leitores se afastam. Afinal, como pode um romance como esse, que parece tratar de temas tão banais e cuja ação é praticamente inexistente, ser o favorito de tanta gente e encontrar adoradores até hoje?
Eu fiz essa pergunta na primeira vez em que li, lá em 2006. Era uma das tarefas da disciplina de inglês na faculdade de jornalismo e a professora o defendeu como um dos livros mais amados pelos jovens americanos da década de 1950. Comecei a ler com grande expectativa e logo me vi sem paciência com aquele garoto de família rica, com acesso a boas escolas e que estava desperdiçando o privilégio que tinha.
Mesmo sem vontade, persisti e, da metade para o fim, minha impressão mudou. Passei a ter empatia por Holden. Vi com tristeza a relação que ele mantém com a família, principalmente depois da morte de um dos seus irmãos. Entendi o sentimento de inadequação. E depois desse tempo de "ambientação" de quase meio livro, consegui, enfim, me aproximar do ponto de vista de um adolescente vivendo num Estados Unidos pós-guerra.
E não atribuo essa demora em me conectar a uma falha do autor. Acredito que tenha sido muito mais uma dificuldade em lembrar como eu era e o que sentia na idade dele - mesmo que na época da leitura eu estivesse mais perto da adolescência do que da vida adulta. É que se trata de um momento tão intenso e tão estranho que depois que ele passa não conseguimos colocar em palavras todo aquele turbilhão - e nem simpatizar verdadeiramente com quem passa por esta fase depois de nós, vide tantos conflitos entre pais e filhos.
Naquela época, minha fala e escrita deveriam ser como as de Holden: repetitiva, pobre, cheia de raiva e contestação. Meus pensamentos com certeza eram voltados para outras questões - afinal, fui adolescente no Brasil e nos anos 1990/2000 - mas não é preciso fazer muito esforço para lembrar que eu não aceitava nenhum tipo de controle e não entendia as cobranças dos meus pais, que eram rebatidas de forma bem insolente o TEMPO TODO.
E acho que uma das coisas que mais gosto das obras de Salinger é justamente o peso da linguagem na construção da trama. Os diálogos escritos por ele - no Apanhador e em outras histórias - parecem extremamente reais. Têm um ritmo honesto e ao mesmo tempo revelam e escondem informações.
Se você chegou até aqui com alguma vontade de ler a obra dele, indico também os contos que tratam da família Glass, personagens recorrentes no trabalho de Salinger. O diretor de cinema Wes Anderson era tão obcecado por essa família que tentou levá-la para as telas, mas sem sucesso - Salinger sempre foi contra adaptações de seus trabalhos e deixou isso bem claro para quem cuida dos direitos de seus livros. Mas não pense que Anderson desistiu da ideia: o filme Os Excêntricos Tenenbaums é declaradamente inspirado nos conflitos e nas estranhezas dos Glass.
Quem também gosta muito da família Glass, e de Salinger em geral, é Sally Rooney, autora de Pessoas Normais. Quando perguntada sobre qual livro tinha exercido maior influência em sua escrita, ela respondeu Franny & Zooey, que trata de dois integrantes dessa família desajustada. E vale lembrar que logo que lançou seu primeiro romance Conversas entre amigos, Rooney foi chamada de "Salinger para a geração Snapchat".
Aproveitei as promoções da semana passada para comprar a coleção completa de J.D. Salinger publicada pela Todavia. As edições são lindas e contam com uma nova tradução.
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