#134 Queria ser grande, mas desisti
Ilustração: Eric Chow
O tradutor. Você pensa nele quando lê algum livro originalmente escrito numa língua estrangeira? Deveria. Quanto mais estudo sobre literatura, mais ganho consciência do papel FUNDAMENTAL que a tradução tem.
E, não, tradução não é apenas transpor um texto de uma língua para outra - é também transpor toda uma cultura. A depender da obra, a tarefa pode ser simples ou monumental. Pensemos em Grande Sertão: Veredas, por exemplo. Não consigo imaginar o trampo que foi trazer a história de Riobaldo e Diadorim para o alemão ou para o inglês. São tantos neologismos, um sotaque único, uma ambientação tão particular - coisas que muitas vezes passam batido ou viram um desafio até mesmo para nós, falantes do português.
Nas últimas semanas, analisei mais de perto as traduções de alguns romances de Machado de Assis para o inglês. E, nossa, que ginástica é preciso fazer para não eliminar a fina ironia e as ambiguidades tão presentes nos textos de um dos nossos mais celebrados autores.
Existem várias traduções de Memórias Póstumas de Brás Cubas, todas com muitas diferenças entre si - desde o título a pequenas escolhas de palavras que acabam mudando nossa percepção das personagens. A mais recente foi publicada este ano e é da Flora Thomson-DeVeaux - sim, a pesquisadora do maravilhoso podcast Praia dos Ossos. E algo que me chamou muita atenção foi o longo processo enfrentado por ela para conseguir dar conta de entender uma palavra que aparece na trama: calabouço.
Calabouço é o lugar para onde Brás Cubas conta que o cunhado enviava os escravos para serem castigados - um castigo institucionalizado pelo Estado. O termo até então vinha sendo apenas traduzido como dungeon. E ponto. Soa mais como um porão, uma cela. Até mesmo em português temos essa ideia. Ao longo do tempo, fomos perdendo a referência que Machado tinha. Eu nunca soube que tivemos lugares assim, uma espécie de prisão para onde os senhores de escravos terceirizavam - e pagavam - para que aquelas pessoas fossem torturadas.
Foi preciso que uma americana, a Flora, fosse atrás de uma série de documentos e fotos para que hoje, em 2020, eu, brasileira, pudesse realmente entender a que Machado de Assis se referia naquele trecho em particular do romance. Muito louco, não é?
Mais um caso que me impressionou, agora falando de outro romance de Machado, foi a percepção de que talvez Capitu não tivesse traído Bentinho. Essa discussão do "traiu ou não traiu", que parece sempre ter rondado Dom Casmurro, foi suscitada primeiro por uma estrangeira, outra americana: a tradutora Helen Caldwell. E isso apenas em 1952 - 53 anos depois da publicação do original.
Caldwell e seu editor levantaram a bola do narrador não-confiável - já que quem tem o monopólio da narrativa é Bentinho, um homem neurótico e ciumento. Ou seja, algo que a gente discute com naturalidade hoje é fruto de uma questão trazida por uma das tradutoras da obra.
Contei tudo isso para defender que valorizemos mais o trabalho de garimpo e costura que envolve a tradução. É tanta pesquisa, tanta reflexão para conseguir respeitar e ao mesmo tempo iluminar o texto de outra pessoa. E é graças a todo esse esforço que temos acesso a livros dos mais variados países, línguas e culturas. Sou eternamente grata <3
Uma conversa deliciosa entre dois tradutores sobre a nova edição de Animal Farm ou A Fazenda dos Animais, de George Orwell - eles explicam a mudança do título, por exemplo, que até então era traduzido aqui no Brasil como A revolução dos bichos
A Antofágica lançou uma edição linda de Dom Casmurro e também um vídeo bem bacana sobre a (não) traição de Capitu
A Todavia vai publicar Joan Didion e eu já estou ansiosa
O ano em que tudo fizemos enquanto nada fazíamos
Uma homenagem às mães que trabalham com audiovisual <3
Uma foto linda de grávida
E este livro aqui?! Poemas e canções da Florence Welch - quem sabe essa versão mais em conta chega por aqui também, né? Porque a que tem para vender via Amazon tem o preço bem salgado :(
Brigadeiro crocante de amendoim
Recebeu a cartinha da semana, mas ainda não assina a newsletter? É só se cadastrar aqui. Também dá pra ler as edições antigas <3 E se quiser me acompanhar: @babibomangelo