#124 Queria ser grande, mas desisti
Arte: Gabriella Roberg
Na minha volta à redação, carreguei comigo o livro da vez: Mrs. Dalloway. E mais de uma amiga parou na minha mesa para comentar como aquela leitura era marcante. Uma delas, a Leda, disse exatamente o seguinte: se eu fosse um livro, seria Mrs. Dalloway.
Mas o que essa história tem de tão especial, afinal? Bom, com ela bem fresca na mente, posso dizer que quase tudo. Desde os temas abordados por Virginia Woolf, como a forma da escrita.
Somos levados a acompanhar algumas horas de uma quarta-feira do mês de junho, em 1923. Clarissa Dalloway vai dar uma festa. E, ao mesmo tempo em que os preparativos fazem parte da rotina, também despertam reflexões doloridas. Quem era ela antes de tudo isso? Antes de ser a esposa de um político? Antes de ter como ponto alto da vida uma festa? Ela gosta das interações sociais, claro, mas também sente que não basta ser lembrada apenas como a anfitriã perfeita.
E como sabemos disso? Como ter certeza de que ela não está se enganando, de que não está se protegendo de um provável rótulo de mulher fútil? Sabemos disso porque Virginia Woolf nos faz entrar nos pensamentos de Clarissa - o tal fluxo da consciência, técnica em que o mais importante é acompanhar as reflexões, e não apenas presenciar diálogos e ações.
Assim, descobrimos que Clarissa enxerga nas festas uma maneira de ver a vida seguindo, em movimento - um contraponto à solidão e à escuridão que ela vive em muitos momentos. Outro pensamento que a assombra é a versão alternativa de seus dias caso tivesse casado com Peter Walsh, um velho amigo que parece entendê-la melhor do que muitos.
Um dos pontos da virada entre a Clarissa de antigamente - mais espontânea e satisfeita - e a Clarissa que conhecemos é o casamento. O marido dela está longe de ser um homem abusivo, limitador, mas ainda assim um marido. E na década de 20, a maioria dos planos de uma mulher casada precisava girar em torno do homem ou pelo menos não entrar em choque com as ambições dele.
Quando jovem, ela e Sally Seton - uma amiga com quem teve um flerte - falavam de casamento como uma catástrofe, como o momento em que não poderiam mais ser elas mesmas. Quando se reecontram, já mais velhas e casadas, Clarissa descreve Sally assim:
"Sua voz, contudo, estava desprovida da exuberância arrebatadora de outrora; os olhos já não tinham o mesmo fulgor dos idos tempos que fumava charutos, em que corria pela casa nua em pelo para buscar a esponja e Ellen Atkins indagava: E se um dos cavalheiros tivesse visto? Mas todos a perdoavam. [...] Era o seu calor; sua vitalidade - ela pintava, ela escrevia. [...] seu pendor a fazer drama e querer ser o centro das atenções, e tudo acabaria descambando, pensava Clarissa, para uma pavorosa tragédia; a morte dela, o martírio dela; mas em vez disso ela se casara [...] E tivera cinco meninos!"
E até mesmo Peter Walsh traz a questão do matrimônio como um fim:
“Aqui está ela, remendando o vestido; remendando o vestido como de costume, pensou ele; passou o tempo em que estive na Índia aqui sentada; remendando o vestido; entretendo-se; frequentando festas; indo e vindo da Câmara e coisa que o valha, pensou ele, cada vez mais irritada, cada vez mais agitada, pois não há nada no mundo que seja tão ruim para algumas mulheres quanto o casamento, pensou ele […]”
Clarissa Dalloway faz parte de um grupo de personagens femininas que chega à vida adulta com um gosto amargo na boca. Elas seguiram os passos que a sociedade ditou - casamento e filhos -, mas depois precisaram encarar que o comportamento padrão não era tão satisfatório quando tinham vendido.
Em um dos ensaios compilados no ótimo Falso Espelho, Jia Tolentino compara o estado de espírito dessas personagens adultas - Anna Kariênina e a Esther, de A redoma de vidro - com o de personagens infantis - a Anne de Green Gables, por exemplo:
"Essa é parte da razão de essas personagens infantis serem todas tão independentes, tão ansiosas para tirar o máximo de qualquer coisa que surja: elas - ou melhor dizendo, suas criadoras - sabem que a idade adulta está sempre no horizonte, e que chegar lá significa casamento e filhos, o que significa, em resumo, o fim."
Falso Espelho, Jia Tolentino
Não quero aqui passar a impressão de que estou pregando contra todo tipo de casamento, mas é inegável que para muitas mulheres, ainda hoje, o começo da vida a dois significa também um aumento nas tarefas domésticas, já que uma divisão justa dentro de casa ainda é exceção nos relacionamentos. E se a equação for assim, quando chegar um filho... daí o tempo que ela tinha para si mesma e para projetos pessoais será praticamente nulo. Muito da mulher que ela era, ou queria ser, acabará sumindo.
Enfim, são algumas das reflexões que tive a partir deste livro tão maravilhoso - fazendo coro às amigas que citei no começo do texto. Mas não posso deixar de citar outro tema que é extremamente importante para o enredo: o tratamento dado a transtornos mentais. É de apertar o coração ver como um homem com estresse pós-traumático é mal interpretado, praticamente ignorado. O desfecho não poderia ser mais triste. Não vou entregar porque desejo que você leia Mrs. Dalloway assim que puder.
Resolvi ler Mrs. Dalloway agora por causa da leitura conjunta conduzida pela Mell Ferraz, do canal Literature-se. Achei a experiência bem bacana. O número de páginas por dia foi leve e a Mell fez várias lives interessantes: sobre a tradução do livro, sobre as ilustrações. O próximo livro do projeto será O retrato de Dorian Gray e já estou ansiosa para tirar mais esse da estante ;)
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