#116 Queria ser grande, mas desisti
Ilustração: Paul Blow
Eu não sou adepta ao pensamento de que essa pandemia veio para mudar tudo. Não acredito num plano sádico que traga mortes e um sofrimento incalculável só para abrir os nossos olhos para o consumismo desenfreado, má distribuição de renda e a negação das relações pessoais em benefício do mundo online.
Afinal, onde estaria a justiça nisso? São os pobres e todos aqueles à margem da sociedade virtual que vão sentir o maior impacto.
Pra gente, da classe média e alta, é mais fácil - e até tentador - criar uma narrativa que pelo menos nos traga alguma lição, algo de positivo depois que tudo isso acabar.
Eu também faço esse exercício. Já me peguei pensando nas transformações no mundo do trabalho, com mais empresas encarando que o home office é possível; e também no fortalecimento dos laços familiares e de amizade, já que vimos o quanto isso faz falta.
Mas hoje percebo que nada disso surgirá a partir de uma iluminação coletiva, todos abrindo os olhos ao mesmo tempo para a verdade que estava logo aqui, na nossa frente. Muitas coisas com certeza mudarão, mas por causa do trauma que restará.
E ainda que a gente não consiga prever quais marcas estão sendo profundamente gravadas, temos pistas. Li na Folha que muitas pessoas têm relatado sonhos estranhos desde que a pandemia começou. É algo que foi observado em outros tempos, em outros países, em outros eventos traumáticos. Na China, por exemplo, estudos mostram que até 20% da população está sofrendo de estresse pós-traumático.
O estopim mais óbvio, é claro, são as milhares de mortes. Aqui no Brasil chegamos num ponto em que estamos perdendo quase mil pessoas por dia. Mil pessoas. Por dia.
Mas essa pandemia tem outras faces difíceis:
- a mudança brutal na rotina;
- a falta de perspectiva financeira;
- a falta de uma previsão para tudo acabar;
- o medo de se aproximar de qualquer pessoa;
- e aqui, no nosso país, ainda passamos pelo desgaste de ter uma população forçadamente dividida entre apoiar a proteção às vidas ou o resgate da economia.
Como amenizar esses sentimentos? Impossível chegar a uma fórmula única, cada um de nós vai responder de forma diferente a essa pandemia. Do que li até agora, a estratégia que mais me agradou foi a dos 3 Cs: controle, conexão e coerência. Deixo aqui um trecho da reportagem, mas recomendo que leiam na íntegra:
“Você pode ter uma sensação de controle planejando suas atividades diárias, como checar como estão seus amigos e entes queridos, mesmo virtualmente, ajustando o quanto de notícias consome, mantendo um diário ou se preparando para o seu futuro pós-pandemia”, explicou Craig Polizzi.
Em relação à conexão, é ela que preenche a necessidade de contato e apoio humano, algo essencial para manter a saúde mental, opinam os cientistas. “A conexão pode ser alcançada, mesmo em momentos de distanciamento social, por meio de telefonemas, videoconferência e mídias sociais, ou mesmo a prática da meditação, que direciona emoções positivas para si mesmo e para outros”, detalhou o autor do estudo.
A coerência, segundo os autores explicam no artigo, “é fundada no desejo profundamente humano de fazer sentido e significado ao mundo”. Polizzi assinalou que um ponto de partida para conquistar a coerência é o enfrentamento baseado na aceitação. “Observando nossos medos, ansiedades e respostas emocionais sem julgamento, uma prática comumente conhecida como atenção plena”, frisou o especialista.
É isso: não tem receita de bolo, mas, sim, muito esforço para superar. Quero muito acreditar que sairemos dessa mais fortes e não apenas traumatizados. Só o tempo dirá.
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