#101 Queria ser grande, mas desisti
"O Primeiro Móvel, se for enviado para cá, deve ser avisado de que, a menos que seja muito seguro de si ou senil, sofrerá um golpe em seu orgulho. Um homem deseja que sua virilidade seja reconhecida, uma mulher deseja que sua feminilidade seja apreciada, por mais indiretos que sejam esse reconhecimento ou essa apreciação. Em Inverno, isso não vai existir. Julga-se ou respeita-se uma pessoa apenas como ser humano. É uma experiência espantosa."
A Mão Esquerda da Escuridão, de Ursula K. Le Guin
Tirei o trecho aí de cima de um dos melhores livros que li este ano, ou talvez na vida. A Mão Esquerda da Escuridão conta a incursão de um terráqueo num planeta chamado Inverno. Ele, o tal do Primeiro Móvel mencionado no texto, tem o objetivo de sondar a população e tentar estabelecer uma parceria com a união interplanetária da qual faz parte.
O que mais chama atenção no povo de Inverno não é alguma tecnologia avançada ou um recurso natural que possa ser valioso. O que eles têm de diferente reside no corpo deles: ninguém tem um gênero pré-definido. Todos são homens e todos são mulheres. Ao mesmo tempo, quase o tempo todo.
O gênero só migra para um dos lados num determinado momento do mês, numa espécie de cio. Daí um dos parceiros desenvolve os órgãos femininos e o outro, os órgãos masculinos. Mas pode ser que no mês seguinte, ou com um novo par, essa situação se inverta. Desse jeito, todos podem se tornar mães, e também pais.
Qual o efeito dessa condição biológica? A autora Ursula K. Le Guin responde:
"Considere: qualquer um pode trabalhar em qualquer coisa. Parece muito simples, mas os efeitos psicológicos são incalculáveis. O fato de toda a população, entre dezessete e trinta e cinco anos de idade, estar sujeita a ficar "amarrada à gravidez" sugere que ninguém aqui fica tão completamente "amarrado", como, provavelmente, ficam as mulheres em outros lugares - psicológica ou fisicamente. Fardo e privilégio são compartilhados de modo bem igualitário; todos têm o mesmo risco a correr ou a mesma escolha a fazer.
(...)
Considere: não existe nenhuma divisão da humanidade em metades forte e fraca, protetora/protegida, dominante/submissa, dona/escrava, ativa/passiva. Na verdade, pode-se verificar que toda a tendência ao dualismo que permeia o pensamento humano é muito reduzida, ou alterada, aqui em Inverno."
Tá aí um planeta onde eu gostaria de morar. Imagina um lugar onde não exista a violência contra a mulher? Onde não exista a demissão pós-licença-maternidade? Onde a gente possa ser o que quiser? Mundo perfeito, não?
Acontece que Inverno está cheio de outros problemas, porque, né, os humanos são complexos. E é aí que repousa a beleza do livro: a história é muito mais do que uma extrapolação sobre gênero. É um conto sobre gente, sobre como nos portamos em situações de extrema desconfiança, de extrema incerteza. A Mão Esquerda da Escuridão é também sobre política, patriotismo, fé e, principalmente, amor.
Se você tem algum preconceito contra ficção científica, faça um esforço para deixar isso de lado e, assim, não perder um livro tão maravilhoso como esse. Está combinado?
Mesmo tendo lido apenas um livro dela, posso dizer que Ursula K Le Guin é incrível. Ela se aventurou por um gênero dominado pelos homens e o fez de maneira tão brilhante que se tornou uma das escritoras norte-americanas mais premiadas de todos os tempos. Ursula morreu em 2018, aos 88 anos, e foi bem ativa durante toda a vida - isso quer dizer que temos muito material disponível sobre ela. Ensaios, entrevistas e discursos. Num desses vídeos, Neil Gaiman conta como Ursula transformou a vida e a escrita dele <3
Outra grande escritora, mas não de ficção científica, Susan Sontag ganha este mês uma senhora biografia. Estou bem curiosa, já que ela levou uma vida pra lá de intensa ;)
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Lendo: David Copperfield, de Charles Dickens, e O ano do macaco, de Patti Smith
Por último, quero deixar aqui um agradecimento a todos os leitores que responderam às perguntas da carta passada, a 100ª newsletter. Fiquei bem feliz de saber dos desejos e medos de alguns de vocês. E ver que compartilhamos tanto <3
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